Sexta, 19 Abril 2024

O assunto da semana passada foi um conto de mistério assinado por King Shelter, pseudônimo de Patrícia Galvão, intelectual engajada, escritora reconhecida pelo mais famoso de seus nomes por trás do nome, Pagu. Neste início de semana, escrevo para tratar do romance Parque Industrial, de 1933, assinado por Mara Lobo, outro de seus pseudônimos.

 

I

Ainda que os pseudônimos não sejam novidade na história literária, o procedimento é característico da literatura moderna e, dizem os especialistas, o fracionamento da voz narrativa de Fernando Pessoa seria uma expressão literária da multiplicidade da era moderna e contemporânea, o que  teria como conseqüência a fragmentação do mundo.

 

Patrícia Galvão, que como jornalista cultural difundiu no Brasil a obra do poeta português, também militava esteticamente: era integrante do Movimento Antropofágico, “dissidência à esquerda” do grupo que realizou a Semana de Arte Moderna de 1922. O Manifesto Antropófago, assinado por Oswald de Andrade no número 1 da Revista de Antropofagia, foi publicado em 01º de maio de 1928, “Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha” – a data do lançamento revela as preferências políticas do grupo. Ela tinha então 18 anos, começava a freqüentar os intelectuais do movimento. Dois anos depois se casaria com o autor do manifesto e, aos 23 anos, publicaria o romance com uma pequena tiragem financiada por Oswald (a editora José Olympio publicou uma nova edição do romance no final do ano passado).

 

Enquanto no poeta português os pseudônimos representam um multifacetamento de viés estético e conceitual, os pseudônimos de Patrícia Galvão refletem por sua vez a atividade multifacetada da autora – militante política, repórter, crítica cultural e romancista, além de ter sido mitificada como musa do modernismo e ícone feminista.

 

King Shelter, um pseudônimo posterior, é uma escolha editorial, já que era o autor de contos policiais e de mistério publicados nos anos 40 na revista Detetive, cujas paisagens são os castelos das regiões rurais e os salões de luxo urbanos de França e Inglaterra (Franco Moretti escreveu que os primeiros se prestam aos assassinatos; os segundos, aos roubos e golpes). As convenções destes tipos de história requerem um narrador do mesmo quilate.

 

II

Agora no domingo, o Caderno 2 do Estadão publicou uma critica de Régis Bonvicino sobre Parque Industrial em que o autor conta que Mara Lobo surge para despistar o Partido Comunista, em que Patrícia Galvão limitava e com o qual queria evitar “atritos” sobre o conteúdo do livro e a caracterização dos personagens.

 

Mesmo assim, a letra da autora é marxista como os duros embates ideológicos dos anos 30 requeriam – estávamos entre as duas guerras mundiais, a democracia liberal fazia água, o comunismo soviético se consolidava e a Europa era envolvida pelo totalitarismo nazi-fascista. Fico com as palavras de Bonvicino: Parque Industrial inaugura no Brasil o romance “panfletário, explícito e assumido”.

 

Apesar da propaganda comunista “explícita” e dos “clichês políticos”, o crítico considera o lado documental o “menos rico” do livro. Ele alerta que a riqueza da obra está no que chama de “delícia literária”: as cenas de sensualidade e de sexo, “sempre ousadas para aquela época”. Outra fonte de bons momentos é o desfrute da linguagem do romance, rico em técnicas da vanguarda literária, como “a frase telegráfica, os diálogos nervosos, os cortes abruptos e uma plasticidade vívida”, bem de acordo com a estética antropofágica.

 

Um exemplo é a passagem a seguir:

 

Metade do cortiço sai para a Fábrica.

A fumaceira se desmancha enegrecendo a rua toda, o bairro todo.

O casarão de tijolo, com grades nas janelas. O apito escapa da chaminé gigante, libertando uma humanidade inteira que se escoa para as ruas da miséria.

Um pedaço da Fábrica regressa ao cortiço.

 

Enquanto o trecho acima é uma amostra de concisão o de baixo, entre tantos outros, mostra o aspecto telegráfico da linguagem do romance:

 

Alfredo, cada dia que passa, sente-se um deslocado e um inútil naquela pobre riqueza agonizante.

Atravessa o viaduto, volta ao [Hotel] Esplanada. Também deserto. Quase fechado. Vai tomar um uísque solitário. Penetra no bar prostituto que se tornou social.

 

Enquanto o efeito telegráfico de Patrícia Galvão é dado pela pontuação frenética, pela construção de parágrafos curtos e pela sucessão repentina de cenários (viaduto, hotel, deserto, fechado, bar prostituto, bar social); outro escritor do período, o norte-americano John dos Passos, também militante e também comunista, havia atingido o efeito telegráfico por meio de outras técnicas, a utilização de espaços em branco no meio de frases e a simulação de noticiários radiofônicos no meio do texto.

 

Em 1919, publicado um ano antes de Parque Industrial, o estado-unidense de origem portuguesa faz seus jovens e militantes personagens cruzarem por várias vezes o Atlântico durante os últimos momentos da Primeira Guerra Mundial (1914-1917). Entre as histórias que se entrelaçam, a narrativa é cortada pela seção NOTICIÁRIO (assim mesmo, em maiúsculas, demonstrando a hierarquia de textos, como se fossem manchetes), em que são simuladas transmissões de rádio que interferem umas nas outras, como a seguir:

 

37º NOTICIÁRIO

 

GUARDAS SOVIÉTICOS DESALOJADOS

 

o comandante-chefe americano presta homenagem aos mortos e feridos e convida os soldados a agradecer a Deus a vitória e declara que se instalou na mente de todos uma nova noção do dever para com Deus e para com a Pátria. Quando foram içados os painéis com os números notou-se que o Zimzizimi, de M. A. Aumont, não corria. Nessa manhã o potro adoecera com um resfriado e em conseqüência foi retirado no último momento

 

OS REPÚBLICANOS PREPARAM-SE PARA OPUGNAR WILSON

MOÇÃO PARA JULGAR O EX-KAISER EM CHICAGO

 

“Johnny pega na carabina
pega na carabina
pega na carabina

Acabamos por derrotá-los”

enfrentamos uma importante alteração na estrutura social deste grande país, declarou Mr. Schwab, o homem que irá integrar a aristocracia do futuro não ingressará nesse escol por direito de nascimento ou de fortuna mas pelos serviços prestados ao seu país.

 

Em outra seção, A LENTE OBJETIVA, a narrativa se liberta do molde noticioso e se dilui na fragmentação urbana e moderna:

 

Percorri a cidade a pé

Greve geral, não há ônibus nem táxis   

Fechadas as portas do metrô 

Na Place de Iéna vi bandeiras vermelhas e Anatole France com a sua barba branca 

placards MUTILÉS DE LA GUERRE e a tromba rebarbativa da polícia de segurança do Estado

Mort aux vaches
na Place de la Concorde a Guarda Republicana com os seus capacetes de árvore de Natal cavalga no meio da turba enxotando os parisienses com a folha dos sabres fragmentos da
Internacional soldados com ar apreensivo de capacetes alinhados diante das armas ensarilhadas ao longo dos Grands Boulevards

 

III

Com as viagens que fez, talvez Patrícia Galvão conhecesse a obra de John dos Passos, mas o que importa é que a ligação das duas obras não é de influência, pelo menos direta, mas sim porque os dois autores são frutos do mesmo tempo e tinham sido criados esteticamente dentro das vanguardas dos anos 20, cuja principal obra, para muita gente, é o romance Ulysses, de James Joyce, publicado em 1922.

 

Um de seus capítulos da à narração de fatos cotidianos o formato de notícias com manchetes como faria John dos Passos dez anos depois:

 

OS ESTAFETAS DA COROA

 

Sob o pórtico do escritório do correio geral engraxates apregoavam e lustravam. Estacionados na Rua North Prince os carros-postais vermelhos de Sua Majestade, trazendo no lado as iniciais reais, E.R., recebiam ruidosamente atirados sacos de cartas, de cartões-postais, de cartas-postais, volumes, assegurados e pagos, para entrega local, provincial, britânica e ultramarina.

 

Sabe-se que Patrícia conhecia a obra do irlandês. O crítico literário Geraldo Galvão Ferraz, seu filho, conta que Patrícia Galvão, em sua passagem por Paris nos anos 30, teve contato com uma tradução para o francês da obra de James Joyce e chegou até a verter trechos para o português a partir da versão francesa.

 

Sobre Joyce, a jornalista cultural Patrícia Galvão publicou em 02 de fevereiro de 1947 – dia do 25º aniversário da primeira edição de Ulysses – um perfil literário do autor para a seção Antologia da Literatura Estrangeira, publicada entre 1946 e 1948 no Suplemento Literário do Diário de São Paulo, junto com uma tradução para o português feita por ela do episódio do funeral de um conhecido do senhor Bloom, o protagonista.

 

Assim Patrícia Galvão apresentava o trecho traduzido de Ulysses aos seus leitores:

 

As interrupções, o simultaneísmo da paisagem psicológica, o monólogo interior, certas síncopes de estilo, jogos de palavras e sua trama, fazem parte da maneira de Joyce, que procuramos transportar com o maior cuidado para esta informação.

 

Os críticos registram a influência de Joyce também em John dos Passos. Aqui no Brasil, a Unicamp realizou uma vez um seminário chamado O realismo nos anos 20-30, em que relacionava as obras dos dois autores. 

 

As ligações Patrícia Galvão/James Joyce/John dos Passos são análogas àquelas descritas por Umberto Eco em seu ensaio Borges e a minha angústia da influência, em que o italiano traça um triângulo para mostrar como a “intertextualidade” funciona.

 

No caso aqui, Patrícia Galvão e John dos Passos são os dois vértices da base, isto é, podem se influenciar mutuamente, parcialmente ou apenas repartir o “espírito do tempo”. Já James Joyce é o terceiro vértice, pairando sobre os dois.

 

Não que esses processos de influência e intertextualidade sejam diretos e mecânicos. As indicações acima são uma simplificação, apenas sugerem como a literatura reaproveita a cada momento seus próprios elementos. O que importa mesmo é como a cada reconfiguração desses componentes, os melhores escritores, como fazem os portos, nos embarcam para grandes viagens.

 

Referências:

Patrícia Galvão como Mara Lobo. Parque Industrial. São Paulo: José Olympio, 2006.

John dos Passos. 1919. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

James Joyce. Ulysses. Rio de Janeiro: Record, s/d.

Umberto Eco. Borges e a minha angústia da influência. In: Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003.

Régis Bonvicino. Parque Industrial, pioneiro ousado. Estado de São Paulo. Caderno 2: São Paulo, 18 de março de 2007, p. D5.

Patrícia Galvão. James Joyce, autor de “Ulysses”. Diário de São Paulo. Suplemento Literário, 02 de fevereiro de 1947. In: Augusto de Campos. Patrícia Galvão Pagu VIDA-OBRA. São Paulo. Brasiliense, 1982.

 

1919 em Porto Literário:

Joe e José, mulheres no porto e a guerra, 21/03/2006.

Confundido com um espião, 28/03/2006.

Pontes literárias entre os portos de Santos e Buenos Aires, 17/10/2006.

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