Sexta, 19 Abril 2024

A partir da edição de Poesia sempre, primeira coletânea de poemas de Narciso de Andrade, o Porto Literário da semana anterior mostrou um pouco do diálogo da obra do autor com a do poeta Roldão Mendes Rosa, que chamava Narciso de poetirmão.

 

Hoje veremos, a partir do poema Pagu, do mesmo livro, o diálogo de Narciso com Patrícia Galvão, o nome por trás do famoso pseudônimo. Antes, vamos à sua transcrição:

 

Pagu

eu ouvia falar de Pagu
de sua coragem de sua valentia
de sua beleza

contavam histórias de Pagu
cobrindo seu corpo
o companheiro que tombava
enfrentando as patas dos cavalos
e o sabre dos milicianos
na Praça da República
nesta cidade de Santos

contavam que Pagu
fora traída por seus companheiros
e quanto martírio sofreu
na imunda cadeia pública
desta cidade de Santos
Pagu mulher virando mito

falavam das viagens de Pagu
a estranhos orientes
andando de bicicleta com o rei
trazendo as primeiras sementes de soja
Pagu nas ruas de Paris
ao lado de Edith Piaff
que vendia castanhas e cantava
Pagu e Edith
na cidade de Paris
com frio, com fome, com tosse
sei lá! É noite em Paris
e tudo pode acontecer
eu ouvia muito falar da beleza de Pagu
de suas formas ardentemente femininas
de seus olhos capitulinos
de seus lábios violentamente pintados
de sua figura dominadora
nos arredores da Escola Normal Caetano de Campos
na austera cidade de São Paulo

eu ouvi falar tanta coisa de Pagu
que até pensei que ela não existia
era uma invenção de visionário
revolucionários que tomam chá com limão
tanta coisa ouvi
que imaginei uma mulher impossível
jamais nascida increada
a Pagu das lendas e dos martírios

sonhei com Pagu até encontrá-la
reciclada em Patrícia Galvão

fomos amigos
era tudo verdade

 

Na verdade, o que ocorre no poema não é um diálogo, pelo menos nos termos em que o assunto foi tratado na semana passada. Lemos em Pagu, de fato, uma espera pelo diálogo, uma expectativa, até um pouco de ansiedade do narrador. Ele ouve tantas coisas fantásticas sobre Pagu que chega até a desacreditar de sua existência (“até pensei que ela não existia/ era uma visão de visionário”).

 

Assim como o professor Adelto Gonçalves destacou na introdução de Poesia sempre, vemos também em Pagu o gosto de Narciso de Andrade pelas coisas e formas reais. Ao transformar a amiga em objeto literário, o poeta celebra a concretude da vida, nesse caso por preferir a pessoa real ao mito, ainda que este tenha sido a forma com a qual o poeta primeiro travou contato com o tema da poesia, que começa em tom de lenda:

 

eu ouvia falar de Pagu

de sua coragem de sua valentia

de sua beleza

 

E a segunda estrofe amplia o efeito ao por o sujeito da ação no plural e em forma indeterminada: “contavam estórias de Pagu”. E ele continua pelas demais estrofes, repetindo o motivo: “contavam que Pagu”, “falavam das viagens de Pagu”, “eu ouvia falar da beleza de Pagu”, até o “eu ouvi falar tanta coisa de Pagu”.

 

Nessas estrofes Pagu enfrentou milícias, traições e a cadeia; tomou um navio no porto para o oriente; trouxe sementes de soja para o Brasil; conheceu Edith Piaff em Paris; passou fome, frio e tossiu; mas era linda, de “formas ardentemente femininas”, “olhos capitulinos”, “lábios violentamente pintados”, um ser que o poeta chega a pensar que não existia, imaginando-a “impossível”. Mas o narrador encontra é Patrícia Galvão e assim termina o poema:

 

sonhei com Pagu até encontrá-la

reciclada em Patrícia Galvão

 

fomos amigos

era tudo verdade

 

Na introdução aos contos policiais de Safra macabra (que Patrícia Galvão havia assinado com outro pseudônimo, King Shelter), o crítico Geraldo Galvão Ferraz, filho da escritora, conta que no final de sua vida Patrícia Galvão costumava dizer que detestava ser chamada de Pagu: “Pagu era o rótulo que parecia designar, segundo ela, uma pessoa que já não existia”.

 

Talvez seja isso o que Narciso pressentia em sua expectativa de diálogo: partir do mito Pagu para chegar à verdade Patrícia Galvão. Só que ao contrário do que queria a escritora e intelectual, por mais que Patrícia Galvão tenha sido mais que Pagu, Pagu nunca deixou de ser parte dela.

 

Era tudo verdade.

 

Referências:

Narciso de Andrade. Pagu. In: Poesia sempre. Santos: Editora Unisanta, 2006.

Geraldo Galvão Ferraz. A pulp fiction de Patrícia Galvão. In: Patrícia Galvão como King Shelter. Safra Macabra: contos policiais. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.   
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