Quarta, 24 Abril 2024

No epílogo da coluna anterior acabei mostrando o que apenas agora consigo definir com mais intenção. Lá, interpretei dois textos cuja intenção é similar: sublinhar os motivos políticos das ações de quatro réus do assassinato de um feitor. Um deles é um romance histórico cujas ações se iniciam em 1917 e vão se desenrolando até o assassinato de um feitor da estiva durante uma viagem de bonde pelo Porto de Santos.

 

O crime, não importa que tenha sido realizado em 1919, está vinculado à trama política desenvolvida por Adelto Gonçalves em Barcelona Brasileira na qual trabalhadores nacionais e imigrantes anarquistas, em 1917, levantam grandes greves na cidade e no país contra a burguesia (o título remete a um dos apelidos ideológicos de Santos). A ficção, sem compromisso nenhum com a verdade além da sinceridade da escrita, assim permite-se tomar o fato real pesquisado nos jornais e a partir dele dar seu próprio testemunho daquela época. Essa sua contribuição individual à história é um de seus valores.

 

O outro texto é um relatório escrito pelo comando da polícia local sobre os fatos da morte do feitor. Um relatório pressupõe a descrição de ações ilegais e até suspeitas de grupos ou indivíduos. Seu valor é o de verdade, inclusive como prova judicial. Aí está sua força. A ele se une o jornalismo, discurso cujo valor também tem lastro na verdade dos fatos. Juntos, criam uma ficção para dar cores políticas – e o direito a deportar imigrantes anarquistas como objetivo – ao que pode ter sido um acerto de contas por brigas e insultos, também comuns no cais, além de qualquer relação com a luta de classes.

 

Se a literatura não tem compromisso com a verdade, também não tem com a mentira e, pensando assim, o valor da literatura como documento ou registro histórico se fortalece. E é aí, neste espaço do registro social, que se encontram o romance histórico e o relatório policial; o primeiro é uma peça de ficção que mostra fatos e o outro é um registro de fatos que acaba se desvirtuando em ficção, olha só. Cabe aos interessados no passado e no que o passado tem a nos dizer, enfim, cabe a esses ir recompondo os laços dessas tramas.

 

Enfim, o artigo

Dois desses interessados, e somos muitos, são Rosângela Ribeiro Gil e Carlos Pimentel, colegas de espaço. Dias atrás Pimentel me contou que havia deixado disponível no Novo Milênio a transcrição e imagens do jornal A Tribuna publicadas entre fevereiro e março de 1946. Elas mostram reportagens e comunicados sobre a greve que se realizava no cais na qual estivadores se negavam a trabalhar em navios da Espanha, governada à força por Franco. O episódio seria romanceado por Jorge Amado em livro publicado em 1954, no qual a ação é transportada no tempo, para 1938.

 

Junto à seção das reportagens acima descritas Pimentel publica dois textos: um, do próprio jornalista, que ressalta exatamente essa transposição de datas e que é chamado Jorge Amado viaja no tempo; e outro, Osvaldo Pacheco: porto-gente-que-luta, de Rosângela, publicado originalmente em Debate Sindical, sobre esse dirigente sindical e deputado que participou do movimento de 1946. É ela que conta: “com pinceladas ou não de ficção, sabemos que o escritor baiano se inspirou, para falar do personagem Oswaldo, no líder-estivador-real Osvaldo”.

 

Para completar, vamos somar outras duas falações sobre o romance Agonia na noite, segundo volume da trilogia Os subterrâneos da liberdade, publicada toda em 1954, com episódios também em Salvador e no Rio de Janeiro: uma é do historiador Rodrigo Rodrigues Tavares, que se utiliza do livro e outros documentos como relatórios, comunicados e panfletos para criticar a mitificação com objetivos políticos; e a outra é deste aqui que vai conduzindo a leitura, no qual tento interpretar a representação heróica do trabalhador portuário conduzida por Jorge Amado em seu romance.

 

II

E o que tem tudo isso? O negócio é que todos nós acima de alguma forma censuramos o ato de Jorge Amado – eu mesmo, ainda que nunca tenha escrito, já me referi ao Agonia na noite usando o termo panfleto.

 

Não que a qualquer de nós desagrade a escrita do autor, mas temos um costume de esperar verossimilhança do romance histórico que é tão entranhando que damos por natural a cobrança (espero que, assim como eu, nenhum deles considere isso um defeito): eu e Tavares criticamos o viés político, Pimentel diz que o autor “viaja no tempo” e Rosângela usa uma frase da ficção para descrever a participação real de seu personagem no episódio.

 

Para oferecer um contraponto a essa abordagem, acredito que se pode aplicar a interpretação sobre os textos do assassinato no bonde a um comentário sobre os dois relatos textuais sobre a greve. Vejamos:

 

a) Agonia na noite, apesar das intenções políticas, é um folhetim, gênero literário nascido nos jornais e que ainda hoje sobrevive nas telenovelas, no qual temos herói, antagonista, romance e drama. Ao transpor a ação para os tempos da guerra, Jorge Amado acentua a carga dramática de seu romance. E, apesar de Franco e o português Salazar terem sido os únicos ditadores fascistas sobreviventes à vitória aliada, as bandeiras de Portugal e Espanha não teriam tanto impacto ao aqui aportar como o pano nazista:

 

O apito de um cargueiro entrando no porto cortou a música do samba do negro Doroteu, o passo da dança de sua negra Inácia. O vulto negro do barco surgia lentamente, e eles todos, doqueiros, marinheiros, ensacadores, passantes e a negra Antônia que vendia doces, o fitaram e ficaram sérios de repente. O negro Doroteu largou sua gaita mágica, era um conhecedor profundo das bandeiras, sabia distingui-las todas umas das outras. Confirmou o receio dos demais quando seus olhos distinguiram antes de todos, na popa do cargueiro agora perpendicular a eles nas manobras para fundear, o odiado trapo, a bandeira imunda, o estandarte abjeto.

 

Ao levar à greve para a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a leitura de Agonia na noite pode apontar, por sua vez, para uma história do imaginário sobre a presença de navios e submarinos do eixo rondando o litoral brasileiro, como sugere a reportagem publicada pela Folha de S. Paulo neste domingo no caderno Mais!, em que lemos relatos e depoimentos de sobreviventes do Araraquara, um de sete navios naufragados por submarinos alemães na costa de Sergipe e da Bahia entre 15 e 19 de agosto de 1942, ataques que resultaram em 468 mortos. E talvez assim, contando com a memória ainda recente dos episódios militares, operação de Jorge Amado tenha mais sentido do que pudéssemos antes imaginar.

 

b) Já as páginas de A Tribuna mostram que, a despeito das legítimas intenções políticas de prejudicar ou ao menos não colaborar com o governo fascista da Espanha, os estivadores tinham um alvo preciso dentro da nação, a liberdade sindical. O telegrama abaixo, compilado pelo repórter que esteve presente a um comício da União Geral dos Sindicatos dos Trabalhadores, aponta ele também para o nazismo para reforçar sua carga dramática:

 

Presidente Gal. Gaspar Dutra - Palácio Catete - Rio - Proletariado santista reunido praça pública comício promovido União Geral Sindicatos Trabalhadores Santos felicita v. excia. decreto revogando dispositivo pluralidade sindical contrária interesses trabalhadores. Encarnando aspiração proletariado nacional, concita v. excia. decretar liberdade e unidade sindical, de acordo atual situação de liberdade e democracia em todos os países mundo. Pede também a v. excia. rompimento com governo fascista de Franco, atual representante de Hitler e Mussolini, inimigo todos povos livres do mundo. - Saudações cordiais.

 

Ainda que no segundo caso a vinculação de Franco a Hitler tenha lógica histórica, não se pode menosprezar, repito, a adição de carga dramática que a expressão “nazista” dá ao texto de Jorge Amado, tão acertado ao provocar a memória da presença de submarinos do Eixo em nossas águas. Memória que deve ser preservada e canalizada pela literatura para que não se repita em paranóias como a expulsão da colônia japonesa de nosso litoral, ação que não se pode esquecer.

 

Epílogo

O jornal eletrônico mantido pelo nome à ponta esquerda do PortoGente (sem trocadilhos ideológicos ou futebolísticos) ainda será reconhecido como uma verdadeira SantosPédia, com valor histórico superior a poliantéias e muitas histórias panorâmicas – o próprio Novo Milênio poderia ser objeto de algum estudo sobre a Internet como recurso para o historiador ou fonte histórica.

 

Referências:

Adelto Gonçalves. Barcelona Brasileira. São Paulo: Publisher Brasil, 2003.

Jorge Amado. Agonia na noite. Tomo II Subterrâneos

Fernando Teixeira da Silva. Operários sem patrões. Os trabalhadores da cidade de Santos no entreguerras. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.

Rodrigo Rodrigues Tavares. O porto vermelho: a maré revolucionária (1930-1951). Módulo VI – Comunistas. Coleção Inventário DEOPS. São Paulo: Arquivo do Estado e Imprensa Oficial, 2001.

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