Sábado, 20 Abril 2024

Carlo Ginzburg, historiador italiano que esteve em São Paulo no final de agosto, retorna ao Porto Literário depois de O terror bíblico dos bombardeios, texto da semana anterior. Ele aqui esteve para uma conferência na Universidade de São Paulo em 28 de agosto, na qual tratou da atualidade de Thomas Hobbes (15881979) para o pensamento político atual. Mas, ao final da palestra, Ginzburg respondeu ao público que lotava o auditório da Geografia questões também sobre as relações entre história e literatura, combustível para um monte de outras colunas.

 

I

Primeiro devo apresentar que os textos deste espaço que tratam justamente do diálogo entre as duas disciplinas devem muito à leitura dos livros e ensaios de Carlo Ginzburg, autor que conheci em resenhas de cadernos culturais e que voltei a encontrar nas bibliografias dos cursos do mestrado em História Social – uma das experiências mais gratificantes do mestrado foi uma aula de Nicolau Sevcenko sobre O queijo e os vermes, obra do italiano que relata a trajetória de um moleiro do interior da Itália no século XVI que, com a difusão dos livros impressos, cria, a partir do imaginário camponês da época, uma própria formulação do nascimento do universo, o que o leva à Inquisição.

 

Em seus livros lemos como mudanças históricas exigem mudanças na forma como os próprios historiadores tratam de seus temas (Mitos, emblemas, sinais); sabemas de que modo expressões tais como “perspectiva” e “ponto de vista” são metáforas cognitivas emprestadas das artes plásticas lá no Iluminismo (Olhos de madeira – nove reflexões sobre a distância); surpreendemo-nos ao saber que a narrativa de Flaubert em Educação sentimental (1869) antecipa a edição cinematográfica (Relações de força); e, finalmente, com o lançamento de 2007, O fio e os rastros, refletimos sobre o real, o ficcional e o falso.

 

II

O breve panorama acima demonstra a fineza e a erudição do pesquisador. Como os temas aí tratados bem indicam, Ginzburg não vê com simplicidade as relações entre história e literatura. Dizer que a primeira é o domínio da verdade e a segunda o da ficção é uma simplificação de uma “relação mais complicada do que isso”. Assim como o direito romano é uma ficção legal cuja descendência é a publicidade de hoje, a literatura, por sua vez, mantém relações com o real: “não há relação ingênua”.

 

Mas que ninguém entenda que Ginzburg é daquelas para quem não há diferença entre os dois campos, que tudo é subjetivo e que depende da perspectiva, num relativismo narrativo típico da pós-modernidade. É justamente por serem campos autônomos do conhecimento e da narrativa que história e literatura complementam-se: “O problema não é evitar os extremos, mas usar um contra o outro, criando um choque entre eles”, disse em sua palestra.

 

Na introdução de O fio e os rastros, Ginzburg registra como esses movimentos se dão em sua obra:

 

Escavando os meandros dos textos, contra as intenções de quem os produziu, podemos fazer emergir vozes incontroladas: por exemplo, as das mulheres ou dos homens que, nos processos de bruxaria, de fato escapavam aos estereótipos sugeridos pelos juízes. Nos romances medievais podemos detectar testemunhos históricos involuntários sobre usos e costumes, isolando na ficção fragmentos de verdade: uma descoberta que hoje nos parece quase banal, mas que tinha um aspecto paradoxal quando, em meados do século XVII, em Paris, foi formulada explicitamente pela primeiras vez. (...) Nesse caminho encontramos, três séculos depois, um grande estudioso (Erich Auerbach) que analisa trechos de Voltaire e Stendhal, lendo respectivamente as Cartas filosóficas e O vermelho e o negro, não como documentos históricos mas como textos entranhados de história. (...) A ficção, alimentada pela história, torna-se matéria-prima de reflexão histórica, ou ficcional, e assim por diante. Essa trama imprevisível pode comprimir-se num nó ou num nome.

 

Epílogo

Com alguns remendos e costuras que não são lá essas coisas, Porto Literário, ao tratar da literatura e da história do porto de Santos, tenta dar sua contribuição a essa trama.

 

Referências:

Carlo Ginzburg. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

E ainda:

Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. Companhia das Letras, 2001 (1ª edição italiana, 1998).

O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Companhia das Letras, 1987 (1ª edição italiana, 1976).

Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Companhia das Letras, 1989 (1ª edição italiana, 1986).

Relações de força: história, retórica, prova. Companhia das Letras, 2002 (1ª edição italiana, 2000).

 

Para ler outro relato da conferência de Carlo Ginzburg: http://tutameia.zip.net, blog de Camila Rodrigues, colega de mestrado.

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