Sexta, 29 Março 2024

Porto Literário já destacou uma vez como a literatura contemporânea nos mostra as “cores e os cheiros do tempo presente”. Apesar das diferenças estéticas entre escritores da atualidade, podemos sempre notar na ficção escrita nos dias de hoje o espírito de nosso tempo.

 

I

Toda obra literária de alguma forma fala de seu tempo, mas o que só a literatura contemporânea pode oferecer ao leitor é a voz do escritor, novato ou experiente, ainda em pleno exercício de sua atividade.

 

Duas dessas vozes são Marcelo Ariel e Flávio Viegas Amoreira, um cubatense e um santista que lançaram livros agora em 2007 pelo projeto Dulcinéia Catadora, como vimos na semana passada.

 

Ariel chega a seu primeiro livro com Me enterrem com a minha AR 15 (Scherzo-Rajada), do qual destaco a prosa poética Beckett-Celular, com todo o cheiro e as cores dos dias de hoje:  

 

Vida Guerra atirou o recém-nascido do quarto andar e antes que aquele boneco do Farnese chegasse ao chão ele explodiu e de destro do recém-nascido saíram celulares com mp3 e câmara digital... antes que eles... os celulares tocassem o solo e se transformassem em mendigos do futuro formados na PUC, USP, UNICAMP, MACKENZIE e etc... mendigos e outros fantasmas invisíveis... visíveis por 30 segundos por causa das 9000 câmeras da Avenida Central (Ex-Avenida Paulista).

Um dos mendigos com mestrado em física antes de desaparecer ouviu o poema dizer:

-         Basta você não ter dinheiro para ser um fantasma invisível lendo isto ou

-         Basta você ter muito dinheiro para ser um fantasma vivo lendo isto

-         Não há nenhuma indiferença disse o vento de 300 km por hora

-         Não nenhuma diferença disse o celular escondido dentro da buceta da menina de 17 anos que acabou de entrar no presídio-escola para foder sem camisinha com o interno FunK-Show que ela conheceu no msn-3.000 do Google-zone

 

Ela vai ficar grávida... “Ele vai desligar o celular... O ex-presidiário vai mandar desligar os aparelhos... O presidente vai aparecer na tv digital de 11 milhões de canais... O mendigo que estava lendo Voltaire vai encontrar outro recém-nascido no lixo... O ex-mendigo agora pseudo-terrorista simbólico vai escrever no mura do presídio-escola:

 

“Não no Brasil... O Não no Brasil... O Não nunca no Brasil... Sem o nunca... Sem jamais no Brasil...

 

Nunca no sim... O Brasil no nunca... sempre para o nunca... Amém!”

 

E aqui onde estamos ’’GANHEI’’ foi o que ele disse para o ministro antes de cair... antes de cair na poltrona... do corpo do presidente saíram vários celulares e todos vibraram enquanto ele dormia num deles... o fantasma do ex-presidente tentava em vão falar com o presidente-fantasma... O ex-mendigo do meio do poema segurando o recém-nascido tirado do lixo disse como se rezasse:

-         Seja bem vindo GODOT.

 

Apesar da invenção literária do autor, duvido que algum texto jornalístico tenha a mesma capacidade de captar a realidade brasileira como faz Ariel em Beckett-Celular. Mas também não quero deixar a impressão errada: a poética de Ariel, como escreve Ademir Demarchi na apresentação do livro, evita “cair na mímese do real e crueza do texto do neo-realismo”. Como o próprio autor disse no lançamento na Livraria Realejo em 01º de setembro, sua literatura não é marginal, primeira coisa que talvez pensemos ao ler seus textos ou o título. Para Ariel, marginalidade é coisa de Brasília.

 

Ouvir Ariel é tão interessante quanto ler sua produção. Na Realejo, leu seus poemas deitado no chão já que lembrava que no Brasil poeta bom é poeta morto. Além disso, entre um verso e outro, ele tece comentários e caracteriza o que é dito. A leitura deitada já havia sido presenciada pelo Porto Literário na Virada Cultural, quando o autor, em frente à estação do Valongo, deitou nos trilhos do bonde para ler alguns de seus poemas.

 

II

Flávio Viegas Amoreira também costuma ler para o público e assim o fez também na Virada Cultural. Na livraria, foi a vez dos textos de Os contornos da serra são adeuses do oceano ao cais, seu sexto livro, o primeiro pelo projeto Dulcinéia Catadora, do qual ficamos com [’’Poemas / 1984’’]:

 

“raízes mão longadas
fios de gotas
prosseguimentos
paragens das asas duplas
coalham sal dos ermos
anoitece horizonte: luz é detalhe

 

queria dizendo até quando
quedo opresso
jardim aquieto
onde ele
tartamudo
lançada rede milhas
canso durdidura”

 

“comer um peixe ardente
mistral dourando brocados
algas silvestres
cristais são ondas fósseis
pena deitar ao mar trevos em forquilhas.”

 

A leitura de Flávio Viegas é marcada por uma forte cadência que o autor não tem receio de interromper para repetir um ou outro verso até que a frase saia ao seu agrado. Outra marca é que as leituras costumam ser precedidas por algumas palavras do autor em que ele avalia o cenário cultural, tanto local como nacional, e faz uma apologia do que chama de “literatura de resistência”. Ao lado do maestro Gilberto Mendes, o autor está à frente do Fórum Santos Cultural.

 

Epílogo

Não importa em qual modo de intervenção atue o artista, o que a postura dos dois autores do Porto Literário de hoje aponta é a teia de relações do artista com o seu tempo e espaço.

 

Referências:

Flávio Viegas Amoreira. Os contornos da serra são adeuses do oceano ao cais. São Paulo: Dulcinéia Catadora, 2007.

 

Marcelo Ariel. Me enterrem com a minha Ar 15 (Scherzo-Rajada). São Paulo: Dulcinéia Catadora, 2007.

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