Quinta, 28 Março 2024

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Apesar de ter morrido em 2003, aos 50 anos, acredito que Bolaño seja o autor latino-americano que mais tenha encarnado a ubiquidade, não só pela própria mobilidade do autor (Chile, México, Espanha), de suas palavras (“Colômbia, que também é Venezuela e México e Chile”) e dos vários registros que compõem sua escritura, das citações mais eruditas à linguagem das ruas da capital do México e dos subempregos em cidades da Europa (por exemplo: o desafio de expressões entre o poeta erudito García Madero, a prostituta Lupe e os protagonistas de Os detetives selvagens).

Qualquer passada de olhos em qualquer livro de Bolaño é suficiente para encontrar personagens e situações de ubiqüidade. Em Estrella distante, publicado pela primeira vez na Espanha em 1996, quase junto a Culturas Híbridas, encontramos algumas “ubiqüidades” latino-americanas. O primeiro exemplo é o do personagem Juan Stein, poeta que acaba envolvido em revoluções na África e na América Central entre os anos 70 e 80. As palavras são do narrador do livro, a tradução é minha:  

O recorte [de jornal] fazia alusão a vários “terroristas chilenos” que haviam entrado na Nicarágua pela Costa Rica com as tropas da Frente Sandinista. Um deles era Juan Stein.
A partir desse momento as notícias sobre Stein não escassearam. Aparecia e desaparecia como um fantasma em todos os lugares onde os latino-americanos, desesperados, generosos, enlouquecidos, valentes, aborrecíveis, destruíam e reconstruíam e voltavam a construir a realidade em um intenso último avanço ao fracasso.

Ou outro, quando o narrador fala da visita que fez à casa de Stein:

Muitas vezes fomos à sua casa, eu e Bibiano, uma casinha pequena perto da Estância que Stein arrendava desde seus tempos de estudante na Universidade de Concepción e que, já como professor na mesma universidade, ainda conservava. A casa, mais do que livros, estava cheia de mapas. Essa foi a primeira coisa que chamou a atenção minha e de Bibiano, encontrar tão poucos livros (…) e tantos mapas. Mapas do Chile, da Argentina, do Peru, mapas da Cordilheira dos Andes, um mapa de estradas da América Central que nunca voltei a ver, editado por uma igreja protestante norte-americana, mapas da Conquista do México, mapas da Revolução Mexicana, mapas da França, da Espanha, da Alemanha, da Itália, um mapa de ferrovias inglesas e um mapa das viagens de trem na literatura inglesa, mapas da Grécia e do Egito, de Israel e do Oriente Médio, da cidade de Jerusalém antiga e moderna, da Índia e do Paquistão, da Birmânia, do Comboja, um mapa das montanhas e rios da China e um dos templos xintoístas do Japão, um mapa do deserto australiano e um da Micronésia, um mapa da Ilha de Páscoa e um mapa da cidade de Puerto Montt, no sul do Chile.

Mas a ubiqüidade de Bolaño não está apenas na diversidade de lugares e deslocamentos em sua obra. Retrato de uma geração derrotada (os jovens que sucumbiram frente às ditaduras latino-americanas), seus relatos apontam para a ubiqüidade da vítima, isto é, não importa se no Chile ou Brasil, na Argentina. A obra de Bolaño é a história deste fracasso.

O bom disso é que ela não é feita de lamentações e não fica lambendo suas próprias feridas publicamente como fez a literatura de testemunho (legitimamente) durante a redemocratização. Bolaño vai além, deixa a experiência imediata para trás e, como escrevi na semana, nos leva à beira do abismo da História e nos convida ao salto. Fecho com o que o narrador diz de um personagem, que poderia ser qualquer um de nós sul-americanos: “… estava na borda do abismo e não sabia ou não se importava ou dissimulava com uma estranha perfeição”.

Referências
Néstor García Clanclini. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: Edusp, 2000 (1ª edição 1997).

Roberto Bolaño. Estrella distante. Barcelona, Espanha: Anagrama, 2000 (1ª edição 1996).

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