Sexta, 29 Março 2024

Saí do texto da semana passada infectado pelo mal de Montano, nome do livro e da enfermidade descrita neste romance de Enrique Vila-Matas [foto] no qual personagens acabam tendo a vida agitada/perturbada por relacionar tudo que lhes ocorre a textos e episódios da literatura.

Para proveito do tema da coluna, o protagonista da primeira parte do livro, também chamada O mal de Montano, segue de cidade portuária em cidade portuária – Barcelona, Nantes, Valparaíso, destacados no texto anterior – mas também Açores, este entreposto no meio do Oceano Atlântico o protagonista acompanha as filmagens de um documentário para o qual contribuiu com o roteiro. Na cena abaixo, ele avista da sacada do hotel um dia de filmagem do qual fez parte seu amigo Tongoy, ator:

Estou em Faial e sou um manuscrito, ou, melhor dizendo, imagino que sou, brinco de sonhar que sou a memória andante da literatura, estou nos Açores, na ilha de Faial, em frente à ilha de Pico, e desta vez viajei com meu diário, estou no meio do Atlântico, longe da Europa e longe da América, suspeitando a momentos que a distância é o é o pacote destas ilhas. Estou na Hospedaria de Santa Cruz, em Faial, em frente à misteriosa ilha de Pico. A noite está caindo, as últimas cores da tarde vão desmaiando – diria Borges. Estou na sacada deste quarto, com sua perfeita vista para o pequeno porto, ao fundo do qual se vê, apagado entre a neblina e o crepúsculo, o imponente vulcão da ilha de Pico, a mais estranha dos Açores, uma ilha que às vezes, apenas às vezes, parece a coisa mais próxima do paraíso, em outras – não há meios termos neste lugar – o inferno. Ao nos aproximarmos de Pico neste manhã, Tongoy me perguntou de repente:

- E não haverá outra morte no paraíso?

Hamburgo, cidade portuária alemã, surge mais à frente, em uma das reminiscências literárias do protagonista após um episódio de sua vida, o encontro na ilha de Pico no qual conhecem um ex-literato que havia abandonado os livros para dar palestras sobre a importância de sorrir:

Diga o que disser Tongoy, esse tal Teixeira que encontramos deserdado na ilha de Pico parece encarnar de forma inquietante o homem novo, o homem por vir ou que talvez já tenha chegado, ao menos em Pico há um exemplar do que nos espera, chama-se Teixeira e eu diria que sua personalidade está todo o momento se despedindo de um modo secular de viver o mundo, de vive-lo e concebê-lo. Não esquecerei facilmente de Teixeira. Atônito ante seu riso desumanizado, bárbaro, eu pensei naquilo que Bismark disse quando viu pela primeira vez os navios modernos no porto de Hamburgo: “Aqui começa um tempo novo, que eu não posso entender”.

Pós Escrito
Não sei que coincidência é esta. Um homem acossado por pensamentos literários vagando de cidade portuária em cidade portuária. Nem de navio ele viaja, é sempre de avião. Mas como portos que são, estas cidades fronteiriças favorecem a formação de uma ideia da chegada de algo perturbador, uma contaminação, uma epidemia que leva à inflamação literária.

Referência
Autor Enrique Vila-Matas. El mal de Montano. Barcelona, Espanha: Anagrama, 2007 (1ª ed. 2002).

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