Quinta, 28 Março 2024

Nos primeiros tempos do iluminismo, a literatura e o pensamento humanista dão forma à figura da utopia, bem conhecida pelo escrito de mesmo nome de Thomas Morus. Uma variação é o país da Cocanha.

 

Quando o homem passa a ser o centro do universo (o tal do antropocentrismo), o pensamento humano dá novas caras ao outro mundo (o paraíso da religião). Nesse momento, o contato que a cultura européia passa a travar com o resto do mundo também gera uma série de relatos sobre o outro – um bom exemplo é o contato de Marco Pólo com o oriente, ficcionalizado por Ítalo Calvino em Cidades invisíveis.

 

I

Sem querer ir muito longe, isso é só para introduzir o tema dos países imaginários e dos relatos de viagem. Lançamento da editora José Olympo é o relato de viagem de William Henry May, inglês que registrou seu Diário de uma viagem da baía de Botafogo à cidade de São Paulo (1810). Esta é a primeira vez que o texto é publicado, nem em inglês há uma edição. A versão brasileira saiu após uma das buscas do bibliófilo José Mindlin, que trouxe de Londres o manuscrito do comerciante britânico estabelecido no Rio de Janeiro e que chegou a trabalhar para o cônsul da Inglaterra no Brasil no período.

 

Na apresentação, o tradutor Jean Marcel Carvalho França nota que este é primeiro relato de viajante europeu sobre a cidade de São Paulo em que se provou que o autor realmente esteve na cidade. Nessa época, às vésperas da abertura dos portos, já eram bem comuns as descrições originárias de expedições culturais ou científicas sobre cidades como Rio de Janeiro e Santos.

 

Em 1715, o francês François Froger publica o relato de suas viagens, entre outros lugares, pela África, Caribe e Brasil, realizadas entre 1695 e 1697. No Brasil, ele esteve apenas no Rio de Janeiro e em Salvador, de onde ouviu o seguinte sobre São Paulo e seu povo:

 

“A cidade de São Paulo, localizada a dez léguas do litoral, foi formada a partir da união de salteadores de todas as nações, os quais, pouco a pouco, formaram uma espécie de república onde, por lei, não se reconhece um governador. Nessa república, circundada por altas montanhas, não se pode nem entrar nem sair senão por um pequeno desfiladeiro”.

 

Pouco depois, em 1722, um suposto padre espanhol, Francisco Correal, ou Coreal, lança seu relato sobre as Índias Ocidentais. Sua biografia diz que esteve em São Paulo, mas o tradutor adverte que há dúvidas sobre o fato. O autor repete a imagem de república independente, cujos moradores tinham a fama de roubar os viajantes:


“(São Paulo) é uma espécie de república originariamente composta por toda a casta de gente sem fé nem lei, obrigada pela necessidade de conservação a adotar uma certa forma de governo”.

 

Outro francês, De Parscau du Plessix, que participou da tomada do Rio de Janeiro em 1711, adverte em seu diário:


“É preciso saber que esses paulistas são um amontoado ou mistura de todos os povos e raças, mistura em que predomina a raça portuguesa, e que são mais ou menos como os flibusteiros (flibusteiro é o nome dado ao pirata dos Estados Unidos)”.


Cidade pouco conhecida pelos viajantes, mesmo assim São Paulo não deixou de constar dos relatos de viagem. Fica então a pergunta: em que gênero narrativo se enquadram tais textos? Mesmo que não possamos tachá-los de históricos pelos padrões da pesquisa científica, devemos lembrar que no século XVIII tais padrões ainda não existiam.


II

No prefácio, José Mindlin relata como o manuscrito chegou em suas mãos. Há vinte anos, em Londres, ele havia participado de um leilão de antiguidades em que estava à procura de uma edição de arte de Língua Guarani. Não obteve a obra, mas, em compensação, um amigo, dono de uma livraria de raridades, lhe ofereceu o manuscrito de William Henry May por um precinho camarada.

 

Referência:

William Henry May. Diário de uma viagem da baía de Botafogo à cidade de São Paulo (1810). Rio de Janeiro: José Olympo, 2006.
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