Sexta, 29 Março 2024

No Porto Literário que zarpou na semana anterior, tratei de relatos imaginários (ou exagerados) sobre a cidade de São Paulo no século XVIII, quando eram comuns as descrições por ouvir dizer. Desta vez, passearemos por dois países imaginários que escritores criaram na América Latina e pelas relações históricas destas criações.

 

I

Aproveitando a morte do ex-ditador paraguaio Alfredo Stroessner, em Brasília, no último dia 16, começamos com a apresentação do general Augusto Alfredo Barahona, ex-ditador do Chileruguay criado pelo escritor mato-grossense Ricardo Guilherme Dicke no romance O Salário dos Poetas. O autor se utiliza dos acontecimentos históricos para moldar Barahona, arquétipo do ditador latino-americano que acaba exilado no Brasil depois de sofrer um golpe de estado. O Chileruguay, como o nome indica, é também um país que reúne características que, em menor ou maior grau, marcaram os governos ditatoriais de nosso subcontinente entre as décadas de 1960 e 1980. O Chileruguay é um exemplo de distopia literária – distopia é a utopia corrompida na origem – do qual o país governado pelo Grande Irmão no romance 1984, de George Orwell, é um dos exemplos mais conhecidos.

 

Exilado no Brasil, em um sítio nos arredores de Cuiabá, o velho ditador sofre um atentado, cena que dá início à trama. Mas a prosa de Dicke passa muito longe do relato histórico. É formada por fluxos de consciência do personagem que delira com as febres causadas pelo ferimento.

 

Já o título se refere ao pagamento que Barahona oferece a um professor universitário para que escreva sua biografia. O professor havia abandonado por algum tempo as salas de aula em troca dos garimpos de Rondônia. Lá havia contraído malária e, por sua vez, vivia também suas febres e alucinações. E a febre não é só dos personagens, é também do cerrado cujo sol queima os intestinos, um “sol que dá vontade de assassinar cristãos”, num ambiente onde “quase sempre é de tarde”. Acompanhemos a cena do atentado, que ocorre no campo, de horizontes “imóveis, opalescentes, circulares, imensos, fantasmais”:

 

“Um tiro seco parte do canavial, longe, e a sombra leva a mão ao ventre com um cansaço súbito se lhe amparando as pernas, uma canseira imensa que abre um abismo sob seus pés, mas não cai, tropica, tomba, agarrando os flancos do cavalo morto, enquanto uma salpicadura tênue de sangue enrojece-lhe o alvor da roupa. Alguém que parte, montado, desembocado numa nuvem de rastilhos de poeira negra e rorejar de faíscas de brasas que voam sob os cascos que se levantam sob o correr de um cavalo veloz que leva um vulto e desaparece no horizonte enevoado de vermelhidões. Quase que não dói, pensa o homem acariciando os regurgitamentos do ventre, uma vertigem de inércia súbita que toma conta dele.”

 

Fiquemos agora com um pouco do delírio do professor, antes de seu retorno a Cuiabá, num hotel de Porto Velho:

 

“Num dos quartos em cima, subindo por uma antiga escada em caracol de madeira, o professor em estado avançado de maleita deitado numa cama, com quatro cobertores grossos, num calor de 40 graus, bate os dentes, amarela a pele, amarelo o corpo, até seus olhos amarelos como os dos gatos, treme, treme e range também toda a velha cama desconjuntada, desde as bases sobre o sujo assoalho esburacado de tacos gastos, e parece que todo o madeirame do secular casarão estremece com ele. Sente-se lúcido no fundo do funil embaciado da grande febre terçã que não o deixa há três dias, desde que chegou das beiras do rio Madeira. Em Porto Velho chove, uma grossa e pesada chuva de verão que obscurece toda a cidade. Os caminhos estão fechados, tudo é embaçado sobre as cordas da tempestade que gira os seus guizos de funâmbulo sideral. Há muito olhou as horas, eram três da tarde. Ouve as gotas que batem como punhos na vidraça do quarto, que golpeiam sobre o telhado de telhas velhas, os ventos que guincham pelos ângulos quebradiços. Tem vontades de abandonar tudo, pegar o ouro, e sem dar satisfações a ninguém, tomar o caminho, ir para Cuiabá. Mas onde fica Cuiabá?”

 

II

O segundo país ficcional desta apresentação é San Cristóbal (ver mapa), localizado nas montanhas entre a Argentina e o Chile. Esse pequeno país existe no romance Fim: notas sobre os últimos dias do império americano, do estado-unidense G.A. Matiasz, thriller político da era da globalização que substitui espiões por ativistas contra o sistema financeiro e o império do título.

 

A ação de Fim... se passa quase em 2020. A segunda guerra do Iraque (que ainda não havia começado quando a obra foi escrita em 1996) é uma realidade, assim como o colapso econômico do que chamamos hoje de “países em desenvolvimento”. Na trama, os territórios do sul do México, onde se localiza Chiapas, estão em guerra civil com o restante do país por autonomia. Apoiando o governo central, os Estados Unidos invadem o que o autor chamou de Territórios Libertados de Mixtecan e Mayapan com armas e equipamentos que unem robótica, tecnologia e química.

 

É aí que entra San Cristóbal. Ao contrário do Chileruguay, San Cristóbal é um representante da utopia. Sua origem é uma colônia penal que o império espanhol implanta nas montanhas andinas para isolar prisioneiros, inimigos políticos, foragidos e todo o tipo de fora-da-lei. Isolados do resto do mundo, seus habitantes criam uma república autônoma, auto-suficiente e sem bandeira. Já no século XX, contingentes de trabalhadores alemães, russos, estado-unidenses, italianos e espanhóis dão caras finais à formação política de San Cristóbal, unindo o socialismo da modernidade às práticas comunitárias dos povos andinos pré-colombianos.

 

A partir da Segunda Guerra, nosso vizinho continental passa a recolher sucata de batalhas e investe pesadamente em tecnologia e, a partir da década de 60, mantém uma rede de satélites lançados clandestinamente que garantem o acesso à mídia mundial, ainda que computadores e programas desenvolvidos de forma isolada impedem que seus usuários possam ser detectados. É San Cristóbal que fornece a tecnologia e armas para a resistência dos Territórios Libertados de Mixtecan e Mayapan.

 

Outra diferença entre nossos dois países ficcionais está na narrativa em que são descritos. Em Fim..., a estratégia de Matiasz é escrever os capítulos que nos informam sobre San Cristóbal, os Territórios Libertados de Mixtecan e Mayapan, bem como a colônia penal de Sulawesi e os equipamentos tanto dos Estados Unidos quanto do país andino em forma de relatório, capítulo de enciclopédia ou reportagem especializada.

 

Conhecemos San Cristóbal, por exemplo, por um fragmento de “Nações e povo da Terra”, um capítulo da obra O Almanaque Mundo Louco e Livro de Fatos Estranhos, de 2010. Em outro momento, a atuação de San Cristóbal nos territórios mexicanas é passada ao leitor como se fosse um relatório de um tenente-coronel do exército dos Estados Unidos:

 

“A comunidade de informações dos Estados Unidos deparou-se com a conexão San Cristóbal no final de 2003m, quando as forças armadas norte-americanas já estavam metidas havia três anos na guerra civil mexicana. Àquela altura, San Cristóbal desenvolvera e instalara campos de deslocamento de fótons para ocultar, primeiramente, seus vales e, depois, suas colônias oceânicas flutuantes de aviões e satélites que pudessem detectá-los. Então, enquanto como soldados sabíamos que lutávamos contra não apenas terroristas da FZL como também contra forças secretas de San Cristóbal, nunca soubemos da extensão ou poder desse ‘inimigo oculto’ até o fim da guerra, quando nosso governo concluiu um acordo covarde de paz com o inimigo em Paris”.

 

III

Esses países, da produção recente da literatura, são apenas dois exemplos da comunidade de nações fictícias que formam uma geografia literária de mapas, descrições, alegorias, utopias e distopias que se relacionam das formas mais diferentes com as forças históricas e com a produção literária do período em que são elaboradas. 

 

Referências:

 

Ricardo Guilherme Dicke. O Salário dos Poetas. Cuiabá: Lei estadual de incentivo à cultura, 2000.

G.A. Matiasz. Fim: notas sobre os últimos dias do império americano. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2001

 

Para outros países da ficção:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_pa%C3%ADses_fict%C3%ADcios
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