Sexta, 19 Abril 2024

No Atlas do romance europeu 1800-1900 Franco Moretti escreveu que “cada espaço determina, ou pelo menos encoraja, sua própria espécie de história”, sentença que norteia as análises históricas sobre literatura que o espaço desenvolve, principalmente em relação às histórias que têm os portos como cenário. Na semana passada, por exemplo, este espaço tratava das histórias de iniciação e como o espaço portuário contribui no enredo de duas delas: as apresentações dos Beatles na cidade portuária de Hamburgo, na Alemanha, e a vigem de Charles Darwin pela América do Sul.

 

Esta última foi apenas citada; era assunto de outra coluna, que tratava de um relato ficcional baseado nos diários do autor de A teoria das espécies. Hoje vamos dar conta da relação entre espaço e narrativa na história de iniciação do cientista.

 

I

Em setembro de 1831, Darwin, com 24 anos de idade, estudava para clérigo, mas sua paixão pela botânica e pela zoologia lhe rendeu uma indicação para o cargo de naturalista da expedição científica que o Almirantado britânico havia encomendado ao HMS Beagle: traçar um mapa do extremo sul do continente e redigir um informe sobre a flora e a fauna do continente, trabalho que rendeu ao autor quantidade de descrições da variedade biológica do continente suficiente para que desenvolvesse seu pensamento.

 

As informações acima são do perfil de Charles Darwin escrito por Christian Kupchik para La ruta argentina, volume de narrativas ficcionais sobre narrativas históricas.  Esse mesmo perfil traz trecho de uma carta em que Darwin mostra que havia perdido a dimensão de quantos relatos teria ainda que escrever para dar conta da diversidade de vida no subcontinente:

 

Uma grande fonte de dúvida é minha total ignorância sobre se anoto os acontecimentos que convêm e se são suficientemente importantes como para interessar aos demais.

 

A carta é de 18 de maio de 1832, antes de a expedição contar um ano, e já abundavam os registros: a bordo do Beagle Darwin colecionou descrições ao longo da costa atlântica e pela costa do Oceano Pacífico da América do Sul. Elas deram estrutura ao relato científico que mais tarde tomou forma na teoria da evolução das espécies.

 

Lembrando que cada espaço pelo menos favorece algum tipo de relato, fica aqui o registro de como as viagens de navios, ao menos no tempo de Darwin, favoreciam o relato científico. Isso porque o relato científico e boa parte dos relatos de navegação repartem a idéia de exploração, que é o motivo mesmo deste tipo de viagem, mas também uma metáfora para a pesquisa científica. Que possa contar a favor da hipótese a quantidade de vezes que o nome do navio – um ícone da exploração – é citado nas histórias que os livros, documentários e reportagens trazem sobre o cientista.

 

Porém, do início de agosto de 1833 Kupchik selecionou um trecho das anotações de Darwin em que o naturalista relata uma viagem percorrida pelo interior de boa parte do território da Argentina.

 

Em terra, como veremos, o relato muda.

 

II

Enquanto o oceano, espaço da exploração, favorece os relatos científicos e de descobrimentos; o continente, espaço das nações, favorece os relatos de consolidação das fronteiras.

 

A seleção começa justamente quando Darwin deixa o Beagle no porto de uma colônia espanhola na foz do Rio Negro, no meio do caminho entre o Estreito de Magalhães e Buenos Aires. A primeira paisagem humana que descreve são ruínas de estâncias que haviam sido destruídas por índios fazia alguns anos, referência às dificuldades de estabelecimento dos limites da fronteira entre o território dos espanhóis, tomado das nações autóctones, e seus remanescentes que resistiam.

 

Na descrição de Darwin (traduzida aqui do espanhol), o relato científico cede espaço ao testemunho histórico. Vemos um país ainda por se ocupar:

 

Do Rio Negro ao norte, ou seja entre a dita corrente fluvial e a região habitada próxima de Buenos Aires, os espanhóis [expressão que se refere aos que falam espanhol] só têm um pequeno povoado, estabelecido recentemente em Baía Branca, e são quase 500 milhas entre o Rio Negro e Buenos Aires. As tribos de errantes de índios montadores, que sempre ocuparam a maior parte desta região, haviam estado acossando nos últimos tempos as estâncias mais distantes. Tempo atrás, o governo buenairense havia formado um exército a mando do general Rosas com o propósito de exterminá-las. Tais tropas estavam na ocasião acampadas às margens do Rio Colorado, que dista umas oitocentas milhas do Negro em direção ao norte. Quando Rosas saiu de Buenos Aires, atacou em linha reta atravessando as planícies ainda não exploradas, e à medida que ia limpando de índios o território deixava a seu passo pequenos grupos de soldados, bem separados entre si, providas de caballadas [postos de correio], o que lhe permitia manter-se em contato com a capital.

 

Para se mover com certa segurança, Darwin andava com uma carta de recomendação do governo de Buenos Aires, passaporte que garantiu ao naturalista viajante um encontro com o próprio Rosas, o caudilho que organizava exércitos para expulsar tribos de índios da planície ou até se aliar a outros grupos indígenas.

 

Em 20 de setembro, o pesquisador chega à capital do país, segue até Santa Fé e, em 20 de outubro, na embocadura do Rio Paraná, volta por via fluvial a Buenos Aires e lá se encontra novamente com os fatos históricos:

 

Como havia estalado uma violenta revolta, todos os portos estavam sob severa fiscalização. Não podia regressar ao meu barco nem tampouco tinha a menor possibilidade de trasladar-me à cidade por terra. Após uma grande conversa com o comandante, obtive sua autorização para apresentar-me ante o general Rolor, que estava no mando de uma divisão revolucionária situada deste lado da capital. Pela manhã me dirigi ao acampamento. Tanto o general como os oficiais e os soldados pareciam ser – e pessoalmente creio que em realidade eram – grandes plebeus. O general se apresentou voluntariamente ante o governador nas vésperas de seu abandono da cidade, e com a mão no coração empenhou sua palavra de que seria fiel até o último momento. Este general me informou que tinha se fechado o bloqueio à cidade, e que tudo o que podia fazer e meu favor era me proporcionar um passaporte que me permitiria ver o comandante-em-chefe dos rebeldes em Quilmes. Portanto, tínhamos que dar uma grande volta em torno da cidade, e foi com grandes dificuldades que conseguimos cavalos. Fui recebido com muita cortesia no acampamento, mas fui advertido que era impossível que me permitissem entrar na cidade. Era justamente o que eu mais ambicionava, pois previa que a partida do Beagle teria lugar muito antes do que em realidade ocorreu.

 

Depois de Rosas ter demonstrado simpatia aos rebeldes, o governador, ministros e parte dos militares abandonaram a cidade, deixando-a à mercê dos sitiantes que acabaram por escolher um novo governador. As notas de Darwin formam uma boa amostra de como os vícios políticos se mantêm em alta nos países da América Latina:

 

De tudo isso se deduzia com claridade que Rosas chegaria finalmente a ser o que pretendia: ditador.

A palavra “rei” suscita uma aversão muito particular entre a gente desta e de outras repúblicas. Após minha partida da América do Sul, soube que Rosas tinha sido eleito, com plenos poderes e por um prazo que estava em aberta oposição com os princípios constitucionais do país.

 

Referência:

Charles Darwin. Relatos de viagem. In.: La ruta argentina. Seleção, tradução e prólogo de Christian Kupchik. Coleção Planeta Nômade. Buenos Aires, Argentina: Editorial Planeta, 1999.
Curta, comente e compartilhe!
Pin It
0
0
0
s2sdefault
powered by social2s
Deixe sua opinião! Comente!