Sábado, 20 Abril 2024

Em 2005, ao apresentar um seminário sobre o romance de identidade portuária Navios Iluminados durante as aulas de História da Cultura e Cultura Popular, o professor Nicolau Sevcenko me perguntou se não seria relevante descobrir – ou pelo menos levantar algumas hipóteses – sobre as razões de a obra de Ranulpho Prata, publicada em 1937, não ter entrado no cânone dos clássicos brasileiros da literatura do século 20, apesar de ter até conquistado um prêmio da Academia Brasileira de Letras. O artigo desta semana tratará de levantar algumas questões sobre a inserção da obra portuária no sistema literário nacional, na expressão de Antonio Candido.

 

Já se escreveu aqui como Navios Iluminados, na época das primeiras críticas sobre o romance, chegou a ser considerado pelo crítico da Folha da Manhã, Rubens Amaral um romance que precisava ser escrito sobre o porto de Santos, cabendo assim ao livro dar expressão literária ao universo do cais.

 

Porém, lançada a pouco mais de cinco anos de sua morte, a obra-prima de Ranulpho Prata não pôde contar com seu ator para ter sido divulgada. Esse é um dos motivos que Primo Viera, professor de filosofia da Universidade Católica de Santos, diz ter colaborado para que a obra não causasse eco nos principais círculos literários do país. Vieira, que traçou em 1962 o perfil Ranulpho Prata, quase esquecido, lembra também que o autor, de forte inclinação católica no final da vida, era arredio e não costumava freqüentar as rodas literárias além do convívio de alguns amigos, como Martins Fontes.

 

Apesar de ter sido reeditado na década de 40 pelo Clube do Livro e ter sido publicado alguns anos depois pelas Edições O Cruzeiro, o livro parecia não despertar qualquer interesse além das descrições sobre o porto. Até na edição mais recente, de 1996, o então prefeito de Santos, David Capistrano, ressalta na orelha do livro o valor histórico de Navios Iluminados, um painel da sociedade santista da virada da década de 20 para 30 do século passado.

 

E o valor literário de Navios Iluminados, quem percebeu?

 

Em 1951, por exemplo, Otto Maria Carpeaux, um dos maiores críticos do Brasil, publica sua Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira, sem qualquer menção à obra ou ao seu autor. A terceira edição, de 1964, chegaria às 3.538 referências bibliográficas, nesta obra que traça os principais nomes, publicações e histórias literárias produzidas no Brasil. Nenhuma delas trata da obra de 1937.

 

Nelson Werneck Sodré, outro dos maiores historiadores do país, também não achou necessário incluir o Navios Iluminados em sua História da Literatura Brasileira, publicada pela primeira vez em 1938. A terceira edição, ampliada, de 1964, continuava sem qualquer referência ao romance de identidade portuária. E destino diferente não teve a obra em outro livro de pesquisas, o Pequeno dicionário de literatura brasileira, organizado por Massaud Moisés e José Paulo Paes, cuja edição de 1983 traz verbetes sobre 350 autores, nenhum deles Ranulpho Prata.

 

Esta ausência do autor das listas e histórias literárias é bem traduzida no título de um artigo que busca um espaço para Prata na literatura nacional, publicado em 1974 por Paulo Carvalho Neto na Revista Interamericana de Bibliografia, editada em Washington, Estados Unidos, texto ainda a ser encontrado e lido por este colunista. Carvalho Neto, doutor em Letras, passou o ano de 1974 como professor visitante e pesquisador em universidades norte-americanas.

 

Outro texto histórico é de 1990, de Sonia Maria Ramos Pestana, é uma monografia de pós-graduação em História que busca as imagens de Santos na obra de Prata, direção de pesquisa que o colunista aqui tem mantido.

 

Além de algumas referências aqui e ali ao longo dos textos da coluna, parece que a coisa só mudou de figura agora, bem recentemente, em 2006, com a publicação de Uma história do romance de 30, de Luís Bueno. Ao invés de selecionar autores e obras que considere os mais representativos do período, Bueno optou por registrar o maior número possível de obras e relacioná-las com o momento histórico a cada momento daquele período, trazendo assim matizes para uma imagem que a crítica costuma considerar monocromática, isto é, para muitos a literatura dos anos 30 não vai além do regionalismo nordestino e da literatura proletária.

 

A norma foi construir o quadro geral do período pouco a pouco, a partir da análise, tão detida quanto possível para um trabalho desta natureza, de cada livro. Assim, a obra de um autor que atravessou a década é abordada em diversos pontos do texto, cada romance sendo discutido no momento em que pareceu sua contribuição ser pertinente para a construção de alguma tendência ou viés significativo do romance de 30.

 

Ao aplicar esta nova metodologia, o pesquisador consegue traçar novas análises sobre o período. É o que faz com o próprio Navios Iluminados ao tratá-lo como precursor de Vidas secas, de Graciliano Ramos, lançado em 1938, relação já exposta no espaço em As letras entre o cais e o sertão, mas, para acabar, vale repetir aqui a consideração do autor pelo romance de identidade portuária:

 

Navios Iluminados é um dos mais significativos romances do final da década. Embora não tenha tido nada o sucesso de Os Corumbas – e em grande medida porque o romance social entusiasmava menos nesses tempos de dúvida que ele próprio contribui para definir –, o romance de Ranulpho Prata tem todas as suas qualidades, acrescidas da escrita madura de um autor já veterano, que conhecia bem seus meios de expressão. Embora não seja um livro de todo desconhecido – já teve três edições, a última de 1996 – permanece menos lido do que deveria ser.

 

 

Referências:

Luís Bueno. Uma história do romance de 30. São Paulo: Editora Unicamp e Edusp, 2006.

Ranulpho Prata. Navios Iluminados. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937.

Nelson Werneck Sodré. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1964 (1ª edição: 1938).

Otto Maria Carpeaux. Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Letras e Artes, 1964 (1ª edição: 1951).

Massaud Moisés e José Paulo Paes (organizadores). Pequeno dicionário de literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1983.
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