Quinta, 25 Abril 2024

Na coluna anterior (As cores dos bairros portuários), Porto Literário pôs as pinturas portuárias de Benito Quinquela Martín para dialogar com o romance de identidade portuária Navios Iluminados (1937), de Ranulpho Prata. Nas obras dos dois artistas, o universo do trabalho portuário toma conta de toda a forma artística, tanto no Macuco, o bairro portuário de Santos, como na Boca, o bairro portuário de Buenos Aires. Para hoje, a coluna prometeu continuar o tema pela relação do pintor com seu bairro.

 

Quinquela (1890-1977) é filho adotivo de Manuel Chinchella, imigrante italiano, carvoeiro do bairro da Boca, e Justina Molina, argentina da província de Entre Ríos, dona-de-casa. Nos primeiros anos do século XX, chega à adolescência em meio ao turbilhão político das reivindicações trabalhistas e greves do período. Em 1904, a Boca é o bairro mais politizado e inquieto de Buenos Aires. Seus moradores ajudam na eleição do primeiro deputado socialista do parlamento argentino, inclusive o jovem Benito, que pregava cartazes e distribuía folhetos pelas ruas da cidade, além de ajudar o pai no ofício de carvoeiro.

 

Dois anos depois, passa a freqüentar a Sociedade União da Boca, uma escola de e para trabalhadores com cursos desde economia doméstica até confecção. Lá, ele utiliza a biblioteca e passa a receber aulas de desenho e pintura por parte do pintor Alfredo Lazzari. A poetisa Julia Prilutzky Farny, amiga e autora de um ensaio biográfico sobre o autor, conta assim o primeiro contato de Quinquela com a arte:

 

Um dia, descobre um livro de Auguste Rodin – A arte –, onde o mestre afirma sua convicção sobre a facilidade da arte: toda obra que exige um esforço excessivo não é criação pessoal nem verdadeira.

 

E o garoto sente, de pronto, que esse bairro – seu bairro –, que esse rio – seu rio –, que essas embarcações e essas casas e essas gruas e esses homens do porto são sempre os mesmos e sempre diferentes. Sente que cada momento algo muda nesse estável panorama, sente que a luz e a sombra lutam constantemente para produzir imagens novas, matizes inéditos. Sente o calafrio da água estremecida pelo vento e o ondular das velas esticadas e a aparente resignação dos cemitérios de barcos onde a vida recomeça a cada instante. O garoto compreende, subitamente, que esse é seu mundo de sempre. E para sempre.

 

Em 1916, já era assunto das resenhas críticas e das revistas de arte. O então diretor da Academia Nacional de Belas Artes, Pío Collivadino, fala o seguinte sobre o iniciante:

 

Depois de ter visto este jovem, sinto-me tão envergonhado que não voltarei a pintar motivos da Boca.

 

Começa então a expor pelo país. Em 1919, espanholiza o nome de família e o adota como pré-nome, deixando Martín como sobrenome. Assim nasce Benito Quinquela Martín. Em 1920, realiza sua primeira exposição internacional no Rio de Janeiro. A partir daí, expõe em Madri (1923), Paris (1926), Nova York (1928), Havana (1928), Roma (1929) e Londres (1930). Após anos de viagens, volta para o bairro portuário e dali não sairia mais.

 

O amor e o sentimento de pertencer ao seu bairro foram materializados em doações de bens públicos pelo pintor, o que ele humildemente chamava de “devoluções” ao bairro que o criou e forneceu seu principal motivo artístico: graças à sua pintura ele construiu a Escola Pedro de Mendoza (1934), a Creche Municipal nº 04 (1947), o Jardim Maternal (1948), a Escola de Artes Gráficas (1950), o Instituto Odontológico (1959) e o Teatro de la Ribera (1971).

 

Em seu ensaio sobre o pintor, a biógrafa, além de relacionar a pintura de Quinquela com seu conteúdo, parece também medir o impacto que sua atuação teve sobre o bairro:

 

A Boca era assim, antes dos quadros de Quinquela? Ninguém sabe. O antigo Riachuelo dos navios foi cinza e sujo e melancólico, e as humildes casinhas de zinco e de madeira deram à Boca essa fisionomia tão singular em nossas latitudes, levantando-se ao lado de navios encalhados e depósitos, barracas e estaleiros. Não, não tinha cor aquele cais coberto de palha, nem a oleosidade turva, cegante. Os quadros de Quinquela não se pareciam com a realidade da Boca. Estavam mais distantes no tempo, pressentidos, imaginados e, apesar de tudo, estranhamente certos.

 

Além da obra, assim Farny fala sobre a personalidade humana de Quinquela:

 

Eis aqui um homem – há muitos, mas vamos insistir neste caso por demasiado conhecido – que desmente com sua presença, sua conduta, com sua vida, todos os traçados prévios, todos os esquemas geométricos sobre o ressentimento. Eis aqui um homem que desconhece sua origem, que tem um infância dolorida, uma adolescência miserável, uma juventude de tremenda luta e que realiza durante toda sua vida madura – e através de permanentes obstáculos – uma excepcional obra de artista. Mas, sobretudo, uma vida de rara perfeição. Sem invejas, sem sobras, sem rancores. Eis aqui uma criatura humana que recebeu uma enorme porção de dor, de escória, de sofrimento, e que a transforma em bem, em risadas, em sonhos, em beleza. Eis aqui um ser sobre o qual caem todos os elementos traumatizantes sem estragá-lo, sem envelhecê-lo, sem empobrecê-lo espiritualmente. Eis aqui Benito Quinquela Martín. Há muitos como ele.

 

Parece que vivemos em tempos em que não faz mais sentido a última frase da biógrafa. Talvez por isso mesmo precisamos de mais Quinquelas.

 

Referências:

Julia Prilutzky Farny. Quinquela Martín: el hombre que invento un puerto. Buenos Aires: Plus Ultra, 1978.

Para conhecer outros quadros do autor, acesse o site da galeria Zurbaran.
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