Sexta, 29 Março 2024

Carlini* Nelson L. Carlini é engenheiro naval e consultor na área de logística portuária e transporte marítimo.

Nilson Mello* Nilson Mello é advogado e jornalista, sócio diretor do Ferreira de Mello Advocacia e da Meta Consultoria e Comunicação.

O Projeto de Lei 4.199 de 2020, também conhecido como BR do Mar, é dessas iniciativas cercadas de boas intenções que, contudo, não deve surtir o efeito esperado, uma vez que parte de diagnósticos equivocados. Encaminhado ao Congresso no início de agosto, o PL tem como objetivo estimular o crescimento do transporte de cabotagem, isto é, entre os portos nacionais, e, para tanto, considera que o principal entrave ao setor é a pequena disponibilidade de navios. Pressupõe, também, que o modal está estagnado, registrando baixo crescimento. Com trâmite de urgência pedido pelo Planalto, o PL passou a trancar a pauta na Câmara no dia 28 de outubro e por isso deverá voltar ao exame nesta segunda quinzena de novembro.

Ambas as premissas do projeto são falsas, mas, teoricamente, com base nelas, o PL estabelece medidas para que empresas estrangeiras possam ampliar a operação na cabotagem, como se essa participação hoje fosse reduzida, o que também não é verdadeiro, pois 95% do transporte de cabotagem já são feitos por empresas sob controle estrangeiro. Para completar, o PL abre indiretamente a possibilidade de financiamento a estaleiros estrangeiros, para a produção de embarcações no exterior, em detrimento da indústria naval nacional (ver Nota de Esclarecimento ao término do artigo). Nesse caso, em vez de atrairmos mais financiamentos para o Brasil, estaríamos, na prática, disponibilizando recursos para garantir o emprego de operários chineses, coreanos e japoneses.

Na grande maioria dos países do mundo, mesmo nas economias mais abertas, como os Estados Unidos, o transporte de cabotagem é reservado a empresas nacionais, com tripulações nacionais e, de preferência, operando navios produzidos no próprio país. E isso se deve a questões estratégicas atinentes à soberania, à segurança e à economia, que guardam estreita relação entre si. Por sua vez, a vinculação da indústria naval ao modal é feita como forma de estímulo à produção e à geração de empregos. São setores que, por razões óbvias, devem integrar uma mesma cadeia econômica, com crescimento recíproco, retroalimentado, a exemplo do que o agronegócio representa para a indústria de implementos agrícolas, e vice-versa.

A cabotagem é um dos modais que mais crescem no Brasil, e hoje representa 11% de nossa matriz de transportes. Na década passada, cresceu em média 10% ao ano, de acordo com dados da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) e da Confederação Nacional dos Transportes (CNT). De 2010 a 2018, o crescimento do modal foi de 28%, saltando de 127 milhões de toneladas transportadas para algo próximo aos 164 milhões de toneladas. De 2017 para 2018, o crescimento no volume transportado foi de 16,7%.

Em 2019, em particular no primeiro semestre daquele ano, comparado ao mesmo período de 2018, quando houve a greve dos caminhoneiros, o crescimento do modal foi ainda mais robusto, de 24,7%. Os “donos” da carga perceberam que não poderiam ficar reféns das contingências (políticas e estruturais) das rodovias – ou do transporte rodoviário. O transporte marítimo pelos mais de 8 mil km de costa brasileira é mais seguro e muito menos poluente do que o transporte rodoviário. Por essa razão, é razoável que o governo pretenda dar maior estímulo ao seu desenvolvimento – embora, como demonstram os números acima – esse crescimento esteja sendo sustentável ao longo do tempo.

Contudo, não será ofertando um número maior de navios que se dará novo impulso ao modal. Muito menos com navios fabricados no exterior, à custa do desmonte de nossa indústria naval. Isso vai contra os interesses nacionais. Os verdadeiros entraves do setor não estão relacionados à falta de embarcações. Vale dizer que a taxa de ocupação média da frota que opera na cabotagem está em torno de 75% (25% de ociosidade). O gargalo, portanto, não está aí.

Os grandes óbices à cabotagem são o excesso de burocracia nos portos - onde há uma dezena de órgãos intervenientes, sem a devida uniformidade de atuação -, as elevadas taxas portuárias, a obrigatoriedade dos serviços de praticagem (pilotos específicos para cada porto), os elevados encargos trabalhistas das tripulações brasileiras e o alto preço do bunker (combustível naval), sobre o qual incide o ICMS, ao contrário do diesel rodoviário, subsidiado. Nenhum desses entraves é enfrentado pelo BR do Mar, que prefere apostar numa maior entrada em serviço de navios estrangeiros, fabricados no exterior, com financiamento indireto brasileiro.

Se o caminho adotado pelo PL é equivocado, o que deve então ser feito em prol da cabotagem? De forma prática, acabar com a incidência de ICMS sobre o bunker, tornando a competição com o modal rodoviário justa; eliminar a obrigatoriedade do serviço de praticagem para os navios que operam regularmente na cabotagem; permitir o livre trânsito de carga entre os portos nacionais, sem burocracia; e reduzir os encargos trabalhistas sobre as tripulações brasileiras, bem como equiparar o número de tripulantes a níveis internacionais, o que hoje não ocorre, isso enquanto não se têm uma efetiva reforma trabalhista que desonere de vez o emprego no Brasil de forma linear e sem subterfúgios, como a “pejotização”.

Complementarmente, como concessão às empresas internacionais que operam no Mercosul, determinar a abertura do mercado entre Brasil. Argentina e Uruguai. Paralelamente, conceder às embarcações produzidas no Brasil prioridade na renovação de contratos de transporte de afretamento marítimo de longo prazo, nos afretamentos por viagem. Por fim, conceder às Empresas Brasileiras de Investimentos Navais (EBIN) isenção de Imposto de Renda, a exemplo do que está sendo feito com os fundos de infraestrutura, quando o investimento for realizado em construção de navios no Brasil. Esse roteiro é politicamente desafiador, mas muito mais realista e eficaz.
*Nelson L. Carlini é engenheiro naval e consultor na área de logística portuária e transporte marítimo; Nilson Mello é advogado e jornalista, sócio diretor do Ferreira de Mello Advocacia e da Meta Consultoria e Comunicação.

**Nota:
O PL abre indiretamente a possibilidade de financiamento a estaleiros estrangeiros, em detrimento da indústria naval nacional, na medida em que às empresas estrangeiras com sede no Brasil, seria dado acesso ao Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante (AFRMM).

O PL autoriza a importação sem restrições (isenção) de um navio, mas a matriz poderá criar quantas subsidiárias considerar convenientes para transferir para o Brasil a quantidade de navios que entender necessária à sua operação na cabotagem. Ao mesmo tempo, a coligada no exterior poderá construir embarcações em outros países, uma vez que tem colocação assegurada para as suas embarcações usadas: o mercado brasileiro de cabotagem.

Na prática, como essa “triangulação” poderá acontecer? De acordo com os incisos I e II do artigo 11 do PL nº 4.199 (BR do MAR), essas empresas passam a fazer jus aos recursos do AFRMM, tributo pago por importadores e que é destinado à quitação do financiamento do Fundo da Marinha Mercante (FMM), teoricamente, usado na construção de embarcações em estaleiros brasileiros.

Um aspecto ainda mais controverso é que, no caso de origem ou destino Norte e Nordeste, o AFRMM não é pago à empresa de navegação pelo dono da carga (embarcador), mas na forma de ressarcimento do Fundo de Marinha Mercante (FMM).

Isto significa que o navio afretado, construído no exterior, fará jus ao recebimento de recursos originalmente destinados a pagamento de financiamentos para construção no Brasil. Com essa possibilidade aberta pelo artigo 11 do PL nº 4.199 esses recursos do FMM estariam liberados à EBN para amortizar a compra de navios, mesmo na China, Japão, Cingapura e Coréia, entre outros. (NLC e NM)

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