Sábado, 04 Mai 2024

Escrevi uma vez, lá em 2005, quando essa coluna começava, As descrições de um médico escritor, em que apresentei algumas passagens do romance de identidade portuária Navios Iluminados em que seu autor, o médico Ranulpho Prata, se utiliza de seus conhecimentos de pneumologia para nos mostrar os ataques de tuberculose do protagonista, José Severino de Jesus. Hoje, veremos como a narrativa de Prata se alimentou da medicina.

 

I

A própria experiência de Prata em contato diário com estivadores “chumbeados” (expressão do narrador para descrever os personagens com tuberculose) colabora para trazer verossimilhança ao relato.

 

– Não pode continuar a pegar peso por uns tempos. Vai ter uma licença de três meses. Tome aqui este atestado e procure no escritório o superintendente, o doutor Custódio.

 

A frase acima é do doutor Miranda, do serviço médico dos estivadores, dita a José Severino de Jesus quando o protagonista do romance já havia adquirido alguma experiência na estiva. Não há como saber quantas vezes o próprio Ranulpho Prata teve que dizer algo parecido aos estivadores que atendia, mas um anúncio de seu consultório publicado em 1º de janeiro de 1938 em A Tribuna indica o volume de trabalho do radiologista que, naquele ano, prestava serviço para a Santa Casa, Beneficência Portuguesa e ambulatório Gaffrée–Guinle (nomes dos sócios da concessionária dos serviços portuários, criado para o atendimento dos trabalhadores do porto).

 


Ranulpho Prata, sem data, imagem digitalizada a partir

de original de Wilma Therezinha Fernandes de Andrade

 

Prata tirava raios X de pulmões, coração, aorta, estômago, visícula biliar e rins. Nota-se no anúncio a disponibilidade do médico: além do horário de atendimento (8 às 5 horas) no consultório na Praça Ruy Barbosa, 27, na Casa Alemã, a peça traz o telefone residencial do médico: 6063, prática não repetida pelos demais médicos que anunciavam na página.

 

Estar disponível tanto no consultório como em casa aponta que Prata considerava o exercício da medicina uma obrigação moral. Em epígrafe a Dentro da vida, seu segundo romance, de 1922, Prata aplica uma sentença do poeta santista Miguel Couto:

 

Não vos esqueças, então, de que se toda a medicina não está na bondade, menos vale separada dela.

 

A qual acrescentou:

 

Por menor e mais humilde que seja a sua condição, o homem pode realizar alguma coisa de grande e útil na vida.

 

O acréscimo talvez tenha sido colocado porque Prata considerava sua especialidade médica, a radiologia, menos satisfatória que o ofício de escrever, no que informou a Silveira Peixoto, redator da revista Vamos Ler em janeiro de 1942:

 

Escrevo para satisfazer uma necessidade orgânica. Médico radiologista que não passo de mero fotógrafo de vísceras, escrevo porque não posso deixar de escrever. Há uma força incoercível dentro de mim, que me faz pensar, que me faz arquitetar enredos, que cria em meu cérebro uma porção de personagens, exigem vida própria e não me deixam socegado [sic], enquanto não lhe dou liberdade, enquanto não apanho da pena para fixá-los no papel e aí encontrar suas aventuras.

 

II

O geógrafo Carles Carreras y Verdaguer, professor de Geografia e Literatura, ao comentar as descrições dos acidentes de trabalho e do avanço da tuberculose do protagonista de Navios Iluminados, destacou a literatura produzida por médicos. Assim como os padres, sua formação humanista do século XIX e início do século XX os coloca como narradores privilegiados do drama humano. Escritores sem ser escritores, formam uma categoria profissional com acesso à “documentação humana”, matéria-prima de seus escritos. Na virada de século, ainda conforme o professor, apontaram os caminhos para os estudos das condições demográficas.

 

O historiador Carlo Ginzburg aponta, por sua vez, a influência da forma de conhecimento médico – do caso individual à análise dos indícios – na formação das ciências humanas entre os séculos XVIII e XIX. Daí as metáforas do diagnóstico e da “anatomia da sociedade”, esta usada, por exemplo, por Karl Marx. Ginzburg vai além e aproxima a atitude do médico em relação ao paciente à do historiador em relação com seu objeto:

 

Mesmo que o historiador não possa deixar de se referir, explícita ou implicitamente, a séries de fenômenos comparáveis, a sua estratégia cognoscitiva assim como os seus códigos expressivos permanecem intrinsicamente individualizantes (mesmo que o indivíduo seja talvez um grupo social ou uma sociedade inteira). Nesse sentido, o historiador é comparável ao médico, que utiliza os quadros nosográficos para analisar o mal específico de cada doente. E, como o do médico, o conhecimento histórico é indireto, indiciário, conjetural.

        

O conhecimento médico, vale lembrar, está na base do “paradigma moderno” brasileiro, cujos alicerces são três formas de saber técnico-científico, a “a medicina (normatizando o corpo), a educação (conformando as “mentalidades”) e a engenharia (organizando o espaço). Ao se considerar um “mero fotógrafo de vísceras”, Prata inclui de uma forma bem particular o peso do saber científico da medicina na conformação da sociedade, ainda mais quando ao “mero” médico contrapõe a necessidade de escrever. Para o autor, ser médico era uma responsabilidade, não um privilégio. Silveira Bueno, na introdução sobre o autor para a segunda edição de Navios Iluminados (Clube do Livro, 1946), descreve o amigo como “médico de profissão, mas escritor de nascimento”. Mas Silveira Bueno avança na interpretação e traça uma relação entre os dois ofícios:

 

A medicina disciplinara-lhe a fantasia pela observação do quotidiana do ser humano, a obra mais real da Criação. O laboratório do médico educara os olhos do artista para tudo ver na medida exata da verdade, embora a fantasia do escritor atenuasse um pouco a crueldade dos episódios.

 

Um exemplo do impacto da observação médica na descrição literária está no capítulo 18. A passagem é a mesma utilizada para o texto de 2005:

 

No fim dessa mesma semana, foi trabalhar no armazém frigorífico. Cá fora um noroeste bravo, sapecando a pele, escaldando a cidade, e lá dentro uma temperatura de 30 graus abaixo de zero.

Quando o fardo de carne congelada, enrolado de pano branco e duro como ferro, lhe caía nas costas, Severino encolhia-se, fazia caretas, mordia os beiços. Não era o peso, era o frio que o incomodava, que lhe queimava os ombros como uma cataplasma fervendo. A tarde todo e a noite até as dez horas, ficou a carrear para a plataforma do armazém os fardos de carne que o guindaste pegava e depositava nos porões do Witell, que partia ao amanhecer para a Alemanha.

Deixou o serviço com uma dor no peito esquerdo, uma dor fininha que aumentava ao puxar o fôlego. Florinda [esposa de Severino] queimou o lugar com iodo e na manhã seguinte estava sarado. Mas depois do café, ao rumas para o cais, teve um acesso repentino de tosse e tornou a cuspir sangue, desta vez uma estria mais vermelha e mais grossa. Reparou na novidade. Durante o dia, na descarga de sal, as pernas molhadas até os joelhos, o sangue reapareceu por três vezes.

 

Do verão do vento noroeste, o trabalho de Severino na estiva continua e avança sobre as garoas do inverno:

 

Às três horas da manhã, vindo da cantina, onde fora tomar um café quente para espertar, tossiu e tossiu forte, como até ali ainda não o fizera. Subiu-lhe à garganta um líquido morno e doce. E não houve como impedi-la. A golfada, irresistível, projetou-se no chão. Severino arregalou os olhos apavorado. Olhou em torno para ver se não fora observado. E como sentisse vontade de ter novos vômitos, correu para as latrinas do pátio, fechando-se por dentro. Aí, à vontade, botou sangue pra fora a valer. Vendo tanto sangue jorrar-lhe da boca, com o ímpeto e volume das sangrias de bois, em Patrocínio, nos dias de feira, Severino aterrou-se, deu de tremer, alagando-se de suor. Se não sentasse, cairia. Tomou a cor do ladrilho branco que cobria as paredes.

 

Mas, apesar do forte conteúdo social de Navios Iluminados, não se pode caracterizá-lo como um representante típico da literatura proletária. Veremos porque na próxima semana.

 

Epílogo

Recebi na semana passada pelo correio o número 135 (julho-agosto) da revista Vértice, publicada em Lisboa, com um artigo meu, O bonde pelas ruas e pela literatura do Porto de Santos, originário de um dos artigos aqui do Porto Literário, O bonde-operário da Moscouzinha Brasileira. Gostaria de fazer um agradecimento público ao professor Adelto Gonçalves pelo apoio por ter mandado o texto à Editorial Caminho, que mantém a revista.

 

Referências

Ranulpho Prata. Navios Iluminados. São Paulo: Clube do Livro, 1946.

Carlo Ginzburg. Sinais: Raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Companhia das Letras: São Paulo, 2007.

Micael M. Herschmann e , Carlos Alberto Messeder Pereira. O imaginário moderno no Brasil. In: A invenção do Brasil Moderno: medicina, educação e engenharia nos anos 20-30 (organizado pelos autores). Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

Carles Carreras y Verdaguer. Curso de Geografia e Literatura da pós-graduação do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Aula de 24 de abril de 2003.

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