Sábado, 04 Mai 2024

I

Boa parte da literatura escrita na década de 30 do século passado foi composta por um otimismo revolucionário que acabou definindo o gênero da literatura proletária, na expressão do Centro de Pesquisas da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC). Dessa safra temos, por exemplo, Parque Industrial, de Patrícia Galvão, de 1932. Navios Iluminados, o romance do porto de Santos, por sua vez, é de 1937, enquanto a história de seus personagens transpassa entre o final de 1926 e algum momento entre 1931 e 1932, os anos que compreendem a tragédia do estivador José Severino de Jesus, migrante de Patrocínio do Coité, na Bahia.

 

Os personagens do romance vivem antes do horizonte revolucionário do romance proletário, tendência que recua no final dos 30. Para Luis Bueno, historiador da literatura, professor da Federal do Paraná e autor de Uma história do Romance de 30, Navios Iluminados inaugura em 1937 um novo momento, o da “nova dúvida”, cujo marco principal é Vidas secas, publicado no ano seguinte pela mesma editora de Prata, a José Olympio. Nesses romances, as soluções não mais existem.

 

II

A força do romance talvez esteja em encher de significados as três cargas históricas acima demarcadas. Do tempo dos personagens (1926-1932), o período é de reduzida força política, principalmente nos anos iniciais, quando os estivadores não tinham representação sindical própria, só reorganizada em 1931. É o momento anterior às conquistas trabalhistas (as universais, mas principalmente as próprias da categoria, como limite de peso e medidas de segurança), ocorridas a partir de 1931 – cujo marco histórico é a Revolução de 30, isto é, a tragédia de Severino é mais verossímil se for deslocada no tempo, poucos anos para trás, exatamente como narrada no livro.

 

A tragédia do personagem de 1926-32, que não poderia ocorrer após esse período, tem também outro valor na escala temporal, porque é um emblema do presente em que foi escrita, 1937, o ano de implantação do Estado Novo.

 

A obra se move muito bem entre narrar péssimas condições de trabalho do tempo da narrativa; e, na data de publicação, ter a mesma idade do golpe. No intervalo entre esses dois tempos, temos o momento da literatura revolucionária, da ascensão do romance proletário e do ciclo do regionalismo, boa parte engajada literária e ideologicamente com transformações sociais.

 

Navios Iluminados, isto é, seu enredo e sua publicação, está muito distante da literatura proletária. No primeiro caso, em relação ao enredo, porque as transformações sociais têm pouco espaço para ocorrer em histórias trágicas, como é o caso da tragédia social do livro, nas quais os personagens não conseguem evitar seus destinos; e distante no segundo caso, a data de publicação, simplesmente porque derrotada politicamente. Tudo isso em alguns anos, entre 1926 e 1937.

 

III

Um elemento da narrativa que contribuiu muito para a ausência de soluções sociais nesse livro do momento da “nova dúvida” é seu tom resignado que, na verdade, não é do narrador, vem do próprio autor. A resignação permeia boa parte de sua obra.

 

Por exemplo nesta cena do último capítulo de Navios Iluminados, na qual Severino, já castigado pela tuberculose, recebe a visita do irmão Gonçalo, que procurava trabalho em Santos. Ele dá notícia do destino dos demais irmãos: Manoel foi para o sertão de Pernambuco, Bispo foi para Salvador e Zeferino virou agregado do Major Guedes. A resposta de Severino revela o conteúdo de resignação do romance:

 

– Pelo meu gosto, você voltava, meu irmão. Não se lembra de que a mãe dizia que a sorte de pobre é torcida? Agora estou crente que é mesmo. Não está me vendo? Não há canto no mundo onde pobre não sofra. É sina que Deus lhe deu. E toda sina tem que ser cumprida. Quem tem forças pra fugir? Aqui ou lá, é a mesma coisa. Não tem apelo. Sendo assim, o melhor é ficar no lugar onde nasceu.

O cigarro e a conversa provocaram-lhe tosse.

– Aceite o meu conselho de mais velho, de quem já passou o seu pedaço, está cheio de desenganos e mais para a morte que pra vida. Volte para trás e fique penando lá mesmo.

 

“É sina que Deus lhe deu”: aqui podemos caracterizar com mais precisão a resignação do autor, religiosa, mais propriamente cristã e católica. Sangue do sangue, carne da carne – para ficarmos em imagens católicas – Gonçalo substitui Severino entre os “magotes de homens” que esperam por uma vaga à frente da Companhia Docas de Santos, o que torna eterno o sofrimento (o sobrenome Jesus não aparece ao acaso).

 

Já na passagem de José Severino de Jesus pelo pavilhão de tuberculosos da Santa Casa, encontramos outra cena de significado religioso, de seu leito ele vê na sala ao lado um altar com a imagem da santa Imaculada Conceição:

 

Fitando a santa, que tinha as mãos erguidas, num suavíssimo gesto de benção, as feições tristes, baixando sobre seu coração uma tranqüilidade doce, tão doce que lhe fechou os olhos por alguns instantes. Neste minuto extraordinário depôs sua alma aos pés da santa, agarrando-se com ela, num desespero de afogado. Mentalmente, sem mesmo chegar a balbuciar, pediu, rogou, fez promessas iguais às de Nosso Senhor do Bonfim. Já que viera ter ali, ficar debaixo da proteção daquela imagem, devia também pegar-se com ela o que podia valer com mais presteza, pois estava vendo de perto a sua angústia.  

 

Em Ranulpho Prata, quase esquecido, o professor Monsenhor Primo Vieira, neste texto de 1962, quando era professor da Filosofia da Universidade Católica de Santos, descreve a crescente religiosidade do autor, de quem era amigo, em seus últimos anos de vida (nascido em 1896, Prata morreria em 1942). Ele planejava após a publicação de Navios Iluminados escrever um romance sobre sua conversão à prática católica, cujo nome seria Luz na Montanha.

 

IV

Prata era amigo também de Jackson de Figueiredo, pensador católico que, ao lado de Alceu Amorosa Lima, formava uma corrente também bastante significativa do pensamento nacional naquele momento. Quando Figueiredo morre, em 1929, oito anos antes da publicação de Navios Iluminados, Prata escreve um texto no qual revela que, “espiritualmente, tudo lhe devia”. Nesse texto, percebe-se bem a religiosidade do autor:

 

Deixaste a tua marca nos corações dos teus amigos e o legado de teu exemplo. Exemplo de fé, exemplo de dignidade, exemplo de bondade.

Se não cresse, o teu desaparecimento crudelíssimo faria a blasfêmia roçar nos meus lábios. Mas creio. E resigno-me.

 

Bem disseste naquelas últimas palavras que escreveste para nós, no livrinho consolador de Moysés Marcondes: “para a alma cristã não há sofrimento ou angústia que não se possa transformar em razão superior de vida – ainda mais cristã e mais santa”.

 

Primo Vieira, que teve acesso à “amiudada” correspondência trocada entre os dois, conta que, por mais de uma vez, Figueiredo havia convidado Prata a ser sócio em uma livraria católica. Ele destaca também o papel “apostólico” de Figueiredo na formação de Prata. É do pensador católico uma das primeiras apreciações sobre a obra de Prata. Em três de setembro de 1918, Figueiredo publica no jornal A Notícia, do Rio de Janeiro, uma crítica a O Triunfo (primeiro romance de Prata) chamada Carta a um jovem romancista, na qual já aparecem os temas do calvário e da busca por iluminação divina. Entre os conselhos:

 

Viva, isto é, sofra, aprofunde o seu próprio incontentamento e há de ver que o que mais lhe dói e mais o magôa, é não ser a vida o que pudera ser, se Jesus fosse um exemplo e não um puro símbolo, como é para quasi [sic] todos nós que só vemos o sacrifício no cume da montanha.

 

Essa imagem, continua Primo Vieira, ficaria marcada na consciência de Prata, tanto que se traduz no título de Luz na Montanha, obra que permaneceu apenas esboçada com o desaparecimento do autor em 24 de dezembro de 1942, a qual o professor de filosofia encontrou em um velho caderno de Prata o enredo central do que viria a ser o romance:

 

O personagem principal da ficção é Pedro Alencastre. O físico é franzino e miserável, mirrado; parece uma criança doente. Além de tudo é epilético. Sofre de ataques constantes. É um artista, grande intelectual, escritor e dramaturgo. É ateu. O seu pai, Julio, enriqueceu, a custa de negócios escusos, falências fraudulentas, etc. E vive sequioso de dinheiro. É só o que pensa: só que deseja, é só o que cuida. É homem fisicamente grosseiro, de grande estatura, maxilares possantes e riso grosso. A sua mãe Ana (nome da mãe de Ranulfo) [sic, o comentário é de Primo Vieira] é o inverso. É franzina e delicada como uma criança. Religiosa e mesquinha. Julio e Ana vivem mal, em quartos separados, sempre questionando. Pedro tem um irmão, José, que é de corpo um rapagão, estroina e mulherengo. De espírito, não lê um jornal. Até os vinte e quatro anos viveu com a família, onde só tinha motivos de sofrimentos, porque o pai não o ligava; a mãe era carinhosa, mas de alma mesquinha, sem caridade e sem generosidade.

Maltratava os criados, fazendo questão de todo o tostão, dando pouca comida, etc. E o irmão o maltratava com a sua saúde e pouco caso. Pedro tem um amigo médico: Roberto. Pouco depois Pedro tem um acidente, e um ataque, e cai sobre um fogareiro de álcool.

        

Antes da transcrição do manuscrito, Primo Vieira qualifica Luz na Montanha de “confidencial” pelo paralelo da “tomada de consciência católica perante o problema da vida” tanto por parte de Prata quanto do protagonista de sua obra inacabada. A semelhança entre os dois não é de profissão, como entre Prata e o médico de Dentro da Vida (seu segundo romance, de 1922), mas de fragilidade física. A descrição que Prata traça de seu protagonista da obra inacabada (franzino, mirrado) é muito próxima da que Silveira Bueno traça do próprio autor, ao lembrar do dia em que se conheceram, à época da publicação de O lírio na torrente: “era bem menor do que eu e, sobretudo, franzino”. Além do porte semelhante, Prata também passou pela experiência da doença. Teve, descreve Primo Vieira, um abscesso pulmonar, tratado em 1924. Ao invés do médico recém formado que passa a clinicar no interior de Dentro da Vida, em A Luz na Montanha o motivo católico era o sofrimento do protagonista como oportunidade para a iluminação cristã.

 

O tema da doença está também na conferência Servidão e grandeza da doença, pronunciada na Associação dos Médicos de Santos em 18 de outubro de 1940, dois anos antes de morrer, Prata disse que o “tumulto” dos órgãos humanos um dia “murcha como um balão furado” e que a vida interior é que interessa:

 

A verdadeira vida é a espiritual, buscando-a e aprofundando-a, não fazendo mais do que aperfeiçoar o que há de melhor em nós, do que desenvolver o lado essencial do que constitue a nossa individualidade. A espiritualização é o primado da vida humana, seja ela qual for, cristã ou não.

        

Primo Vieira também comentou a conferência em seu perfil sobre o autor de Navios Iluminados, em que destaca outra passagem sobre sofrimento e doença, na qual observa o “acentuado misticismo em Ranulfo (sic), que crescia, mais e mais, à medida que se aproximava do fim”:

 

Quando os discípulos perguntavam a Jesus na presença do cego na nascença: ’’Quem pecou, este ou os seus pais para que ficasse cego?’’ o Mestre respondeu: ’’Nem ele pecou, nem seus pais’’. A doença não é necessariamente o sinal de ira de Deus ou seu castigo. Nesse episódio, Jesus recusa a lançar a culpa no cego, nos pais ou em Deus. Diz apenas que a doença é uma oportunidade para fazer as obras de Deus.

        

Acredito que sem o horizonte revolucionário da literatura proletária, o romance de Prata tenha ficado livre de compromissos ideológicos – não que não tenha outros –, principalmente em relação a dar cores de heróis à classe trabalhadora; a resignação católica fortalece ainda mais o componente trágico relativo ao destino.

 

Só que a resignação e a imutabilidade do destino são narradas, como vimos na semana passada, por um autor que também era médico, pneumologista, e que atendia estivadores em seu consultório levados pelo ambulatório da Companhia Docas de Santos. E cuja técnica era narrar o que testemunhava. Daí que, tudo isso somado e fora da pauta da literatura proletária, o conteúdo de denúncia e documentação social de Navios Iluminados é importantíssimo.

 

Epílogo

Voltei na semana passada a escrever sobre o Navios Iluminados e creio que voltarei outras vezes até novembro, data final para entregar minha dissertação sobre o livro. Porto Literário será nas próximas semanas, mais do que nunca, uma base de lançamentos da argumentação ou de consolidação de pensamentos anteriores, como o de hoje. Sugestões serão aceitas.

 

Referências:

Ranulpho Prata. Navios Iluminados. Rio de Janeiro: José Olympio , 1937.

 

Ranulpho Prata. Servidão e grandeza da doença. Boletim da Associação dos Médicos de Santos. Volume I, 1940. Trechos transcritos em Marildo Pires Domingues. Médicos literatos de Santos. Santos: edição do autor, 1980 e Monsenhor Primo Vieira.

Ranulpho Prata, quase esquecido. O nome da conferência está na introdução de Paulo Dantas a uma edição da Traço Editora sem data de Lampião (1934), também de Ranulpho Prata.

 

Monsenhor Primo Vieira. Ranulpho Prata, quase esquecido. In: Revista da Universidade Católica de São Paulo. Volume XXIII – Dezembro de 1961 – Março de 1962 – Fascículos 40-41. Páginas 21-49. Há cópias do texto na biblioteca da Academia Santista de Letras e no Centro de Documentação da Baixada Santista, da Universidade Católica de Santos.

 

Vários Autores. Jackson de Figueiredo (1891-1928) – In Memoriam. Rio de Janeiro: Edição do Centro D. Vital, 1929.

 

Jackson de Figueiredo. Carta a um jovem romancista. A Notícia, Rio de Janeiro, 03 de setembro de 1918. Citado em Ranulpho Prata, quase esquecido.

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