Sábado, 04 Mai 2024

Algumas vezes o espaço destas letras já foi ocupado por temas relativos ou que apareceram em jornais literários ou de leitura. Na semana passada, o escrivão deste Porto Literário teve a oportunidade de olhar com atenção duas peças jornalístico-literárias que vão servir para um apanhado mais robusto do tema do jornalismo literário. O exercício foi colaborar na abertura de caminhos para os “passos da leitura”, expressão do pessoal do Proeco para designar o percurso do III Cultura em ação, atividade cultural promovida pela organização não-governamental de quarta a sexta-feira da semana passada no pedaço deles lá na Zona Noroeste.

 

I

Fui lá no terceiro dia do encontro conversar com os alunos do Proeco sobre Jornalismo Literário e levei para eles dois textos publicados em jornal ou revista. São dois textos em que o objetivo jornalístico – a crônica dos fatos – é alcançado pelo manejo de técnicas literárias – o domínio da expressão.

 

Sem mais delongas, foram Machado de Assis e Gabriel García Márquez os jornalistas que assinaram cada um uma das duas peças jornalísticas – Bondes elétricos, de 1892, do primeiro; e Caracas sem água­, sobre um evento de 1958, do segundo.

 

Mas cada faz isso de maneira distinta. Machado usa elementos ficcionais e busca na literatura uma relação irônica e dissimulada com o presente; Gabo, de outra forma, se utiliza dos recursos dramáticos, isto é, o perfil do personagem da reportagem se enquadra em uma história de aventura como o relato sobre o período de estiagem que atingiu a capital da Venezuela no final dos anos 50. Ao lado, Machado de Assis em 1890 por Marc Ferez.

 

II

A crônica Bondes elétricos foi publicada originalmente no Diário do Rio de Janeiro em 16 de outubro de 1892, “importante período de consolidação da imprensa brasileira”, como relacionou Fernando Paixão. Apesar do tom, diria eu, “debochado-chique” de Machado, naquele momento a institucionalização da atividade baseava-se também em uma missão civilizadora adequada ao pensamento de progresso científico, material e social comum daquele período.

 

Olavo Bilac, outro escritor que escrevia para jornais (chegou a substituir o próprio Machado como colunista da Gazeta de Notícias já na primeira década do século XX), diria em 1896 que “o povo não é um povo enquanto não sabe ler jornais”. Ao que um pouco mais tarde, em 1902, Coelho Neto acrescentaria: “o público que lê jornais é um animal que se educa”. E é com muita ironia que Machado acaba olhando por baixo da saia da missão civilizatória.

 

Ele dá início à crônica justificando seu silêncio por não ter tratado dos bonds elétricos que há quatro dias circulavam pelas ruas da capital imperial. Temos aí já uma das matérias-primas do jornalismo, a notícia, no caso a novidade da tração elétrica. O motivo do texto é o encontro do bonde comum, puxado por burros, que levava Machado, com um bonde elétrico que descia a rua em direção contrária.

 

Mas no segundo parágrafo começamos a ser deslocados do mundo das notícias. A primeira coisa que o cronista conta é a postura de superioridade do condutor, que ele ainda chama de “cocheiro”: “Os olhos do homem passavam por cima da gente que ia no meu bond. Posto não fosse feio, não eram as prendas físicas que lhe davam aquele aspecto. Sentia-se nele a convicção de que inventara, não só o bond elétrico, mas a própria eletricidade”.

 

Depois ele descreve a serena marcha do bonde sem burros e o percurso pelo Largo da Lapa e pela Rua do Catete até que o transporte deixasse sua vista, ainda que não sua memória. Machado fica no bonde até que caia a noite, quando só ele, o condutor e o trocador ainda ali se encontrariam, sendo que os outros dois, “pensava” o narrador, cochilavam.

 

Nas narrativas há coisas que ocorrem durante o dia e outras que têm a noite como refúgio. Ao escrever que escurecia, Machado nos leva para o universo noturno, no qual coisas fantásticas costumam ocorrer, ainda mais quando não temos certeza de quem está dormindo, já que ele apenas “pensava” que os demais dormiam.

 

Agora é quase impossível não recorrer à seqüência noite-sono-sonho quando o escritor-cronista anuncia que passa a ouvir a conversa entre os dois burros que puxavam o bonde. E ele ainda nos informa que entendia o que falavam os parentes sem-graça do cavalo por ter lido As viagens de Gulliver (1726), de Jonathan Swift, livro no qual o viajante do título se encontra com um povo formado por cavalos inteligentes, os houyhnhnms, de cujas conversas o autor da crônica revela ter aprendido um pouco do que falavam. E eles falavam de liberdade. A liberdade que teriam com a chegada da eletricidade.

 

III

Vamos ao diálogo dos burros:

 

– Tens e não tens razão, respondia o da direita ao da esquerda.

O da esquerda:

– Desde que a tração elétrica se estenda a todos os bonds, estamos livre, parece claro.

– Claro parece; mas entre parecer e ser, a diferença é grande. Tu não conheces a história da nossa espécie; ignoras a vida dos burros desde o começo do mundo. Tu nem refletes que, tendo o salvador dos homens nascidos entre nós, honrando a nossa humildade com a sua, nem no dia de Natal escapamos da pancadaria cristã. Quem nos poupa no dia, vinga-se no dia seguinte.

– Que tem isso com a liberdade?

– Vejo, redargüiu melancolicamente o burro da direita, vejo que há muito do homem nessa cabeça.

– Como assim, bradou o burro da esquerda estancando o passo.

 

Quando o burro da esquerda pára de puxar a composição a conversa é interrompida pelo castigo do condutor, que dobra as rédeas para atingir com força os animais.

Num texto escrito em 1892 em que dois não há também como não pensar na escravidão, vergonha que ainda atingia a sociedade brasileira e que só seria sanada seis anos depois. E é aí que Machado de Assis demonstra porque o chamam de Bruxo do Cosme Velho. Mais à frente, os burros notam que o passageiro os entende, assustam-se e acabam levando outra pancada do condutor. E a história termina assim:

 

Parece que a lambada devera ser em mim, se era eu que espantava os animais; mas como dizia o burro da esquerda, ainda agora: – Onde está a justiça deste mundo?

 

Sem qualquer teor denuncista, e tendo a ficção como ferramenta de dissimulação, a historieta de Machado de Assis revela em uma simples crônica sobre uma novidade urbana todo um conjunto de relações de dependência social que o historiador Sidney Chalhoub chamou de “ideologia senhorial” em Machado de Assis, historiador, no qual analisa a atuação do escritor enquanto funcionário do Ministério da Agricultura, que à época definia a aplicação das leis e regulamentos sobre a escravidão (nesse livro, Chalhoub mostra como os pareceres de Machado e seus colegas tendiam aos escravos). Esses jogos de dissimulação e despistamento do leitor encontrariam sua mais perfeita forma na ficção de Machado, em “que não raro [o leitor] vê o seu esforço de entendimento solenemente enviado para as calendas gregas”.

 

Como o espaço já vai grande, a reportagem de Gabriel García Márquez fica para a próxima semana.

 

Epílogo

Durante os três dias do III Cultura em Ação as crianças, adolescentes e jovens tiveram a oportunidade de conhecer ou se aprofundar nas atividades da palavra, da literatura ao cordel, da canção popular às manifestações folclóricas, dos espetáculos às rodas de versos. O ponto alto da programação foi a inauguração da Biblioteca Comunitária, com cerca de quatro mil volumes (com direito, claro, a Machado de Assis e Olavo Bilac), que ficará à disposição também dos moradores do bairro. O Proeco fica na Avenida Jovino de Melo, 600, no Jardim Santa Maria. Contato pelo endereço eletrônico [email protected].

 

Referências

Machado de Assis. Bondes elétricos. In: Crônicas escolhidas (edição e apresentação de Fernando Paixão). São Paulo: Folha de São Paulo e Editora Ática, 1994.

 

Elias Thomé Saliba. Nacionalismo e Produção Cultural no Brasil: Dilemas Metodológicos e Perspectivas de Pesquisa. Curso de pós-graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Aula de abril de 2005.

 

Sidney Chalhoub. Machado de Assis, historiador. São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

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