Quarta, 01 Mai 2024

Muito já se disse aqui sobre o livro Navios Iluminados, de 1937. Lembrando rapidamente, esse é o romance de identidade portuária cujo cenário é o cais de Santos e o bairro do Macuco. Mas a conversa nunca pára: na semana passada recebi em casa uma edição em espanhol da obra de Ranulpho Prata, traduzido para Vapores Iluminados, publicada pela Editorial Claridad em Buenos Aires, Argentina, em 1940, pouco tempo depois da primeira edição brasileira.

 

Além do texto em espanhol, a edição traz um prefácio de Benjamín de Garay, tradutor do livro, em que ele apresenta o romance – e também o cais do porto – por meio do mito de El Dorado, a cidade de ouro, mito da conquista de riqueza da colonização espanhola (certamente bem conhecido do público leitor argentino):

 

Em nosso século positivista e cético, o mito de El Dorado, apesar de suas características antigas, se dissipou das mentes. Mas não para desaparecer, mas para apresentar-se sob formas novas e inesperadas.

 

Uma dessas formas é o romance de Ranulpho Prata, em que o mito é renovado na “prosaica realidade contemporânea”:

 

Agora as multidões ávidas por fortuna já não correm em posse da cidade mítica, onde as casas se revestem de metais preciosos e onde as crianças brincam nas ruas com pepitas de ouro ou pedras de carbonatos e diamantes. Não. Vão aos grandes portos, de onde saem e aonde chegam todas as riquezas do mundo, nas barrigas dos grandes navios iluminados, que nas noites se balançam sobre as águas do mar como fantásticos palácios de fadas. Para lá vão em busca de trabalho, à conquista de dinheiro, incitados por um tenaz afã de bem-estar. Uns triunfam, porém os demais caem triturados pela engrenagem sem piedade da sociedade moderna.

 

A passagem acima descreve de forma concisa e elegante a trajetória de muitos dos personagens do romance. A partir daí, sob o impacto da introdução ao imaginário portuário, o tradutor aguça o leitor por outro aspecto, a carga histórica do romance, escrito em um momento da vida brasileira de “interesse extraordinário”:

 

E enquanto uma simples história de uma vida humilde vai se desenvolvendo, sobre o pano de fundo aparece pintado ao vivo, com suas características inconfundíveis, o quadro de um setor da sociedade brasileira no momento de ingressar com passo firme e decidido na era industrial de sua história.

 

O mito e as condições históricas acabam por definir o destino dos migrantes:

 

A cidade atarefada exerce uma estranha fascinação sobre os jovens do campo; eles vêem nas urbes fabris um teatro apropriado para lutas mais frutíferas e para lá vão, em uma penosa peregrinação à fortuna sonhada, que geralmente resulta ilusória.

 

Outra parte do prefácio destaca a formação médica de Ranulpho Prata como componente essencial da narrativa do livro. Ele qualifica Prata como um autor “de raça, sereno, complexo em sua simplicidade, sagaz com naturalidade, sugestivo, vigoroso e terno, que escreve porque tem uma mensagem que faz chegar ao mundo atormentado em que o toca viver”. Para Benjamín de Garay, Prata leva para as letras sua experiência de médico, mas sem “exibição de erudição fácil”. Ao final, sobre o momento histórico da realização do romance, o tradutor conclui:

 

Ranulpho Prata soube apresentar todo este processo da sociedade brasileira em seu romance, pintando-o com sóbrios rasgos no que poderíamos chamar, usando termos pictóricos, um vasto afresco social, admirável pela proporção das figuras, pelo realismo do ambiente e pela ardente vitalidade das almas.

 

O velho oeste

Falando em espaços míticos no Macuco, vale lembrar o memorialista Nelson Salasar Marques. Em 28 de outubro de 1989, na coluna Imagens de um mundo submerso, espaço que mantinha em A Tribuna, ele contou como a ocupação do bairro portuário, naquele momento e naquele espaço em que a cidade acabava e o bairro não era mais que um “mar de areia”, lhe lembrava os filmes de velho oeste. Ele descreve como em 1939, garotinho ainda, participava dos mutirões de construção:

 

Em nenhum outro bairro de Santos o chalé imperou tanto como no Macuco... eram ruas inteiras de chalés, a Comendador Alfaia, a Nabuco de Araújo, Torres Homem, e dezenas delas. Era o tipo de construção adequada para o pioneiro... O chão era quase de graça e em dois ou três dias a casa estava de pé. Os vizinhos ajudavam e eu carreguei muito prego.

 

As ruas citadas pelo memorialista ocupam a área do bairro que se expande para a orla, já para lá da Avenida Afonso Pena. Naquele tempo eram parte do bairro ("metade de Santos parecia ser Macuco"); hoje pertencem aos bairros do Embaré e Aparecida.

 

Esse grande Macuco era formado pela faixa do cais, pela região ao longo da Afonso Pena (o tal do mar de areia), a região próxima à Conselheiro Nébias, mais o canal 4, o canal 5 e o 6, era “tudo Macuco”, tão grande que tinha sua própria bacia, formada pelos canais enumerados acima e independente do sistema que interligava os outros seis canais planejados por Saturnino de Brito. Somente em 1969 o Plano Diretor Físico do Município limitaria o bairro na linha formada pela Afonso Pena e o desmembraria em Embaré, Aparecida e Estuário.

 

Os mitos da expansão desbravadora e da conquista da riqueza, que costumam aparecer juntos, voltam a se repetir neste romance que, graças à narrativa sóbria de Ranulpho Prata, mantém-se rico, atual e bom de ler.

 

Em boa companhia

Vapores Iluminados é o sexto título da coleção Biblioteca de Novelistas Brasileños da Editorial Claridad e recebeu na página de título interna o subtítulo de “o romance dos trabalhadores marítimos”. Os cinco primeiros autores da coleção são Coelho Neto (Rey Negro, o título está em espanhol), Gastão Cruls (Amazônia Misteriosa), Lúcio Cardoso (Morro do Salgueiro), Hermano Lima (Garimpos) e Jorge Amado (Mar Muerto), todos traduzidos e prefaciados por Benjamín de Garay, que verteu também para o espanhol Euclides da Cunha, Monteiro Lobato e Gilberto Freyre.

 

Epílogo

Ao tratar das atividades culturais que envolvem o cais de Porto Alegre (Por uma logística cultural) alertei para que talvez cometesse uma injustiça contra Santos, embora a cidade não use o cais artística ou culturalmente. Ainda que os equipamentos do centro ainda não são pensados pelo poder municipal para interagir entre si (ainda mais agora com a o projeto da marina), Santos já conta sim com uma experiência nesse sentido, a Bienal de Dança do Sesc, que este ano, sob o tema “memória que se inscreve”, promoveu de 14 a 18 de novembro apresentações na Bolsa do Café, no boulevard da XV de Novembro, na Praça Mauá, na Pinacoteca Benedicto Calixto, na Praça das Bandeiras, na Praça do Aquário e na Fonte do Sapo, além das apresentações no próprio Sesc, incluindo, o fosso do teatro e o estacionamento (lembro que na edição anterior, o cassino do Monte Serrat e a Casa da Frontaria Azulejada também foram usados – já uma apresentação na Fortaleza da Barra não ocorreu por causa da chuva).

 

O próprio folheto da Bienal, ao justificar os locais públicos escolhidos para as apresentações, se refere à produção cultural como uma “propriedade do coletivo”:

 

Para público e artistas, o estranhamento do olhar que se depara com o movimento da dança em locais inusitados da cidade, faz surgir associações e reinterpretações do ambiente, cria novos repertórios e possibilidades de ação do futuro e, por conseqüência, um referencial para a conduta do presente.

 

Referências

Ranulpho Prata. Vapores Iluminados. Tradução para o espanhol e prefácio de Benjamín de Garay. Buenos Aires, Argentina: Editorial Claridad, em 1940.

Nelson Salasar Marques. Imagens de um mundo submerso. A Tribuna, 28 de outubro de 1989.

Bienal Sesc de Dança. Memória que se inscreve. Folheto. Sesc SP/Santos, 14 a 18 de novembro de 2007.

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