Terça, 30 Abril 2024

Porto Literário navega nesta semana por uma dica de Márcia Rodrigues, minha companheira, que conclui até fevereiro sua dissertação de mestrado em Jornalismo Cultural sobre o trabalho jornalístico de Patrícia Galvão (a quem muitos chamam Pagu) em A Tribuna, entre 1957 e 1961, quando morre em Santos a jornalista, escritora e ícone feminista (lado já bem manjado, assim como o apelido).

 

Em meio a 188 criticas literárias de Patrícia Galvão, Márcia me apontou uma em particular cuja temática adiantava no final da década de 50 o que seria esse espaço que ocupo hoje. Em 17 de abril de 1960, na coluna Literatura, Mara Lobo, pseudônimo sob o qual Patrícia Galvão escrevia a coluna (criado em 1932 para a publicação do romance Parque Industrial), assina o texto Sobre poesia e ovo. Ali, a autora aproveita a organização de um concurso poético da Comissão Municipal de Cultura cujo tema é Santos para tratar das sugestões poéticas que a cidade oferece aos “amigos das musas”. Mas ela trata também dos perigos daquilo que chama de “poesia cívica”, aquela laudatória, em que os adjetivos são mais importantes que todo o resto. Para a resenhista, o pior tipo de poesia que há:

 

Assim, o perigo é dalgum poeta mais burro, fazer versos, versos não exclui essoutra possibilidade, ao contrário, pois a simpleza da burrice pode acontecer como a inocência da poesia, o perigo é acabar Santos em poesia “cívica” e aí vai tudo por água abaixo.

 

No parágrafo seguinte, Mara Lobo torce para que a comissão julgadora não se deixe empolgar pela tal poesia cívica. Mas antes de alertar para o que poderia ser chamado também de bairrismo ou provincianismo acrítico, a jornalista não deixa de notar as sugestões poéticas de Santos e de seu porto.

 

A verdade é que Santos dá, não apenas panos para mangas, como já deu campeões do mundo para o Brasil conquistar a Taça da Suécia, mas dá margem para que se faça com a cidade, a topografia, a história dela (cidade), as ruas do café, o cais (“ah, todo cais é uma saudade de pedra...”, como luminosamente abre a Ode marítima Fernando Pessoa), a paisagem – Ponta de Itaipus, Muralhas da Serra! – Santos dá, isto sem contar o mar das praias, os peixes e as moças, a vegetação e o sol, tudo isso dá poesia.

 

Mas até aí toda cidade é poética: toda cidade tem sua própria topografia, sua história, suas ruas de movimento econômico; as que não têm praia, têm rio ou montanha, e moças que inspirem poesias estão por todos os lados. E então vem o pulo do gato: Patrícia Galvão define em tons precisos o aspecto poético de uma cidade portuária, o que só Santos e suas similares podem apresentar aos que traçam versos:

 

Santos não é bem um tema, mas uma solução sempre aberta. Do maior, de Vicente de Carvalho, entre os mortos, ao maior, entre os vivos, Ribeiro Couto, o “neto de emigrante” de “Entre o mar e o rio” ao lembrar o cais do Paquetá:

 

“Lusitana melodia,

Voz de inocência e de infância,

Sempre um vapor que partia
E olhos presos na distância”,

 

... entre tantos casos de poetas assim, Santos não é um tema, quero dizer, um assunto fechado, um limite, mas uma expansão.

 

Um porto nunca é um limite – ele é um ponto donde parte a linha vital da navegação, do comércio, do entrelaçamento entre povos, aonde chegam os que vieram de longe para descobrir a América e fazer outros americanos, americanos filhos de gente de todos os quadrantes, e donde partem, partem sempre, os que vão ver outros litorais, outros portos, outros mares.  

 

Assumo esse último parágrafo como instruções colocadas dentre de uma garrafa já naquele distante 17 de abril e que alcança 48 anos depois o cais deste Porto Literário.

 

Canja

A estrofe completa onde está o verso de Pessoa (assinado também por um pseudônimo, Álvaro de Campos) é a seguinte:

 

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve com uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.

 

Para ler o texto completo de Ode marítima, clique aqui.

 

Já a estrofe de Ribeiro Couto é a primeira do poema Cais do Paquetá, publicado originalmente em Entre mar e rio, que reúne poemas escritos entre 1943 e 1946. O poema é o seguinte:

 

Lusitana melodia,
Voz de inocência e de infância,
Sempre um vapor que partia.

E olhos presos na distância.

 

Sempre um vapor que partia

E um menino que ficava
Sonhando o que se escondia
Muito além da praia brava.

 

Sonhando o que se escondia

– Ilhas dos antepassados –

Na fumaça fugidia

Dos vapores carregados,

 

Menino de cais de porto,

A tua mercadoria

Eram vozes do avô morto

Que de volta lá se via.

 

Referências

Patrícia Galvão como Mara Lobo. Sobre poesia e ovo. A Tribuna, 17 de abril de 1960.

Fernando Pessoa como Álvaro de Campos. Ode marítima. Lido na Revista Agulha (http://www.revista.agulha.nom.br/facam04.html).  

Ribeiro Couto. Melhores poemas. Seleção de José Almino. Coleção Melhores Poemas. São Paulo: Global, 2002.

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