Terça, 30 Abril 2024

Desde mudança recente que restringiu aos assinantes o acesso à versão on line, o jornal A Tribuna mantém a seção Papo Exclusivo com os Editores, esta aberta a todos os navegantes, que podem ali comentar e responder as observações dos jornalistas. Nesse espaço, no dia 31 de dezembro, a subeditora do Galeria (o caderno de variedades, arte e cultura), Ineide Souza Di Renzo, repercutiu a morte de Narciso de Andrade.

 

Ineide conta que, ao lado de Roldão Mendes Rosa e outros intelectuais locais, Narciso participou de um momento de efervescência cultural em Santos, cujo epicentro eram as discussões sobre arte, cultura e política em torno das mesas do já mítico bar Regina. Por fim, a jornalista avalia que a morte do poeta deixou uma “lacuna” que só “o tempo e o empenho dos novos poetas e intelectuais” vão mostrar se será preenchida.

 

No domingo, já em 6 de janeiro, a escritora Neiva Pavesi, no quarto comentário ao Papo Exclusivo, acredita que a lacuna não será preenchida. A citação é integral porque os termos do comentário serão discutidos nos parágrafos a seguir:

 

Infelizmente a lacuna deixada por Narciso de Andrade e sua geração de escritores não será preenchida. Temos milhares de "escritores" que se reúnem para ler suas "poesias" em busca de aplausos de seus "pares". Não se preocupam com estilo nem gramática e despedaçam a língua-mãe. Na outra vertente há os que acham que escrever difícil é sinal de erudição. É muito triste!

 

Começo divergindo do uso do termo lacuna, sugerido pela subeditora e aproveitado em viés negativo pela comentarista. A literatura não é uma organização em que as pessoas são substituídas. Nada mais óbvio: os escritores morrem, mas suas obras ficam. No caso de Narciso, publicado em vida, no final de 2006, ainda que com uma obra de mais de cinco décadas, isso é o que ocorreu. Seus poemas estão aí, circulando na coletânea da editora da Unisanta. A publicação de seus poemas em livro lança sua obra para dentro do que Antonio Candido chamou de sistema literário (escrita, publicação, leitura e crítica). Cabe a seus leitores, admiradores e críticos mantê-la no sistema.

 

Ao contrário da teoria dos espaços preenchidos sugerida pelo uso do termo lacuna, creio que literatura se faz por acumulação; acumulação de leituras, acumulação de obras, acumulação de influências, acumulação de reflexões. Daí ser completamente desnecessário ocupar o espaço de alguém.

 

E agora começa a parte mais problemática do comentário de Neiva Pavesi. Ela divide os escritores contemporâneos em dois tipos: os que buscam os aplausos de seus pares e os que acham que escrever difícil é erudição.

 

Deve-se considerar o momento de emoção ao tratar da perda de Narciso, mas discordo de tudo:

 

1 – Não há só dois tipos de escritores. Como lemos nos ensaios de Umberto Eco, cada escritor é seu próprio estilo. Logo, há tantos tipos de escritores quanto há escritores.

 

2 – Não há nada errado em buscar a aprovação dos pares. Escritores se reúnem por afinidades e amizades desde que o mundo é mundo, ainda mais na modernidade do século XX, em que as vanguardas artísticas e movimentos políticos costumavam reunir artistas em torno de manifestos e revistas, sem contar o tal do espírito dos tempos, que impõe aos artistas contemporâneos o contexto artístico e social, não importa a época em que tenham vivido. E se só poetas vão a uma leitura de poesia, o problema não é dos poetas, é da sociedade.

 

3 – Escrever difícil não é erudição há muito tempo. Boa parte da energia do movimento modernista brasileiro foi direcionada ao combate contra o beletrismo (o culto infundado às belas letras), do qual bom exemplo é o texto publicado na Kaxlon, revista-manifesto do Modernismo em que Mário de Andrade, em dezembro de 1922, ironiza a poesia atrasada de Martins Fontes (por mais que os santistas amemos o poeta, ele havia se mantido no ambiente estético do final do século XIX e soava rebuscado demais aos ouvidos modernistas). O próprio Umberto Eco é exemplo de que erudição caminha ao lado do bom humor, enquanto as crônicas de Vicente Cascione, por mais repletas de belas imagens, não passam de textos pomposos de advogado de robusta formação escolar adquirida antes do declínio da educação promovido pela ditadura militar. Há ainda escritores difíceis não porque querem parecer eruditos, mas porque querem mesmo é dificultar as coisas para o leitor, criar obstáculos, desentendimentos e desvios. O exemplo maior é o Ulysses de James Joyce, um calhamaço de inventadas palavras compostas, fluxos de consciência, mudanças constantes de perspectiva do narrador, enfim, todos aqueles componentes que Roland Barthes reuniria no conceito de “leitura de gozo”.

 

Poesia santista contemporânea

Para mostrar que literatura é acumulação, Porto Literário destaca agora quatro escritores contemporâneos da região cujo ofício é manter a acumulação de poesia sobre nossas sensibilidades.

 

Marcelo Ariel, de Cubatão, fala da realidade e da pobreza mas evita o realismo repetitivo que o cinema brasileiro nos oferece dia após dia. A erudição é sua arma contra a mediocridade do relato social. Depois de uma série de poemas em revistas e na internet, Ariel publicou em 2007 seu primeiro livro, Me enterrem com a minha AR 15 (Scherzo-Rajada), pela Dulcinéia Catadora e em 2008 tem mais.

 

Flávio Viegas Amoreira cultiva a tradição da poesia que olha para o mar, que em Santos começa com Vicente de Carvalho. Filia Escorbuto – Cantos da costa (2005) a Camões, só que em chave pós-moderna. É dele também A biblioteca submergida (poesia, 2003), contogramas (relatos, 2004), “Edoardo, o Ele de Nós” (grande novela ou pequeno romance, 2007), publicados pela editora 7letras, e Os contornos da serra são adeuses do oceano ao cais (poesia, 2007), pela Dulcinéia Catadora. É o autor difícil de que se tratou acima. O texto de Flávio repete, acumula, circula, volta, retorna e ao mesmo tempo se expande em todas as direções. Como escreveu o ator, músico e também escritor Thiago Picchi: “Flávio Amoreira escreve certo por vísceras tortas”.

 

Os poemas de Ademir Demarchi, nascido em Maringá e residente em Santos, também são reveladores do presente, mas de um presente decantado. Seu primeiro livro de poesia, Os mortos na sala de jantar, reúnem poemas trabalhados ao longo de anos, numa carpintaria que evita qualquer excesso, numa técnica fazer poético completamente oposta à de Flávio, o que só demonstra a variedade de nossos contemporâneos. O livro foi publicado em Santos pela Editora Realejo com apoio do Programa de Ação Cultural da Secretaria do Estado de Cultura. A seleção do projeto em edital público conta na contabilidade da qualidade literária dos autores de cá. Porto Literário já navegou pelas páginas e ainda deve uma resenha sobre o livro aos leitores deste espaço.

 

E por fim (sem hierarquias, apenas acumulações), Alberto Martins que, em pleno século XXI, renova na literatura as relações entre o porto e a cidade de Santos. A cena inicial da segunda novela de A história dos ossos (2005, Editora 34), em que o cemitério do Paquetá será privatizado para se transformar em pátio de contêineres, é reveladora, ainda que irreal, do impacto das operações portuárias sobre a cidade. São dele ainda Café-com-leite & feijão-com-arroz (2004, Companhia das Letrinhas), Cais (2002, Editora 34), A floresta e o estrangeiro (2000, Companhia das Letrinhas), Goeldi: uma história de horizonte (1995, MAC/Paulinas, vencedor do prêmio Jabuti) e Poemas (1990, Duas Cidades). Alguns poemas de Cais podem ser ouvidos na voz do próprio autor no acervo do Instituto Moreira Salles.

 

Atividades intelectuais

Além da ficção, todos acima atuam também na crítica e na militância cultural: Ariel mantém o blog TeatroFantasma; Flávio Viegas Amoreira é um entusiasta da internet e colabora para sites culturais como o Cronópios, além de promover discussões sobre o rumo da cultura em nossa cidade ao lado do maestro e compositor Gilberto Mendes; Demarchi, mestre e doutor em literatura brasileira, organizou uma antologia de poetas contemporâneos do Paraná e editava a revista de literatura Babel, que parece que vai voltar em 2008; Alberto Martins é um dos diretores da Editora 34 e também gravurista. Além de ilustrar seus próprios livros, suas gravuras já foram expostas coletiva e individualmente, como na mostra Em Trânsito, realizada recentemente, de 01º de setembro do ano passado até agora 06 de janeiro, na Estação Pinacoteca. A eles se une o professor Adelto Gonçalves, também romancista, que vem publicando resenhas e críticas sobre autores de língua portuguesa em revistas como a Vértice, publicada em Lisboa e cuja produção crítica e ensaística já havia sido elogiada pelo próprio Narciso de Andrade na mesma A Tribuna em um texto de 19 de novembro de 1993. Textos de Adelto Gonçalves sobre Machado de Assis já foram traduzidos para o russo e publicados como prefácios a edições do autor carioca publicadas na terra de Dostoiévski.

 

Não temos mais o bar Regina. O mundo inteiro é o bar Regina.

 

Só temos de prestar atenção.

 

Referências:

Narciso de Andrade. Poesia sempre. Santos: Editora Unisanta, 2006.

Umberto Eco. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Roland Barthes. O prazer do texto. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977.

Roland Barthes. Aula. Aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França pronunciada em 7 de janeiro de 1977. Tradução e posfácio de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora Cultrix, 2004

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