Quinta, 02 Mai 2024

O Porto Literário da semana passada tratou do lançamento de Braz Cubas: homenagem a uma vida, do historiador Waldir Rueda. Mostrou-se um pouco do que o Waldir nos traz sobre a idéia e a construção do monumento. Hoje vamos explorar a reconstituição que o autor faz dos eventos que antecederam e culminaram em 26 de janeiro de 1908, dia da inauguração do monumento em homenagem ao fundador da Vila de Santos.

 

Postal da Praça de República de 1920 (acervo de José Carlos Silvares)

 

I

Interessante documento histórico que Waldir leu foi um encarte especial de A Tribuna produzido em dezembro de 1907. O editorial diz no primeiro parágrafo que a alma coletiva, “estranha às consciências individuais”, ordena os acontecimentos do mundo.

 

O jornal caracteriza duas datas próximas como manifestações da alma coletiva: o 26 de janeiro acima citado e também a data indicada pelo título do encarte: Salve 15.1.1908, referência à ascensão do Partido Municipal ao governo da cidade. Salta aos olhos a operação ideológica do jornal: usar a capacidade do monumento de renovar o mito fundador como mecanismo de legitimação política:

 

Há quase quatro séculos, Braz Cubas, em cuja mente criadora, Santos tomava o originário impulso de vida, representava os primeiros sonhos da grandeza reservada a esta cidade.

Hoje, renovadas tantas gerações, sofridos os trabalhos correspondentes à formação dos organismos sociais, o Partido Municipal já representa, no mais alto grau, com o seu sentimento de independência, com a sensação de força com sua vontade fecunda, a feição moral dessa grandeza antesonhada pelo fundador.

 

As três formas verbais sublinhadas assinalam a ligação que se faz entre o passado (“representava”) e o presente (“já representa”) por meio desta chave mítica – “antesonhada” – que é o monumento. Vistas desta forma, são monumentos também as medalhas comemorativas Braz Cubas, cunhadas na Europa por iniciativa da Câmara Municipal para “serem expostas à venda tendo sido elogiadas pela imprensa local em críticas ao trabalho artístico”; um costume que remete diretamente à compra de títulos da aristocracia brasileira do Império e da República Velha (não que ela, a compra de títulos, tenha acabado, mas o agora não é assunto).

 

À pesquisa e à leitura de Waldir devemos também um texto do Cidade de Santos da véspera da inauguração, 25 de janeiro. Desta vez, a construção do monumento mostra ao mundo a capacidade técnica da cidade de participar da modernidade, o fato legitimador é o exame de um político norte-americano, testemunha dos fatos:

 

É justo e já não é sem tempo (pois Braz Cubas morreu em 1592) que Santos amanhã renda o preito de sua homenagem de gratidão, àquele a quem deve o seu nome conhecido em todo o mundo, já por ser um dos maiores impostos comerciais da América, segundo a opinião reconhecidamente autorizada do sr. Boot, o extraordinário estadista norte-americano, que, em São Paulo, ao retirar-se para embarcar, manifestou imensa vontade de conhecer Santos, principalmente seu comércio e seu importante porto, dos quais já tinha ouvido falar em diversos países europeus, por onde passou, quando iniciou sua viagem.

 

Louvando a técnica, continua o jornal a falar do mármore branco, “que no entender de ilustres e antigos escultores gregos e romanos tem muito mais transparência, mais brilho e mais limpidez do que nenhum outro material, pois o mármore branco é por excelência o material do estatutário”. O autor da escultura, Lorenzo Mazza, é tratado como um “continuador da arte grega que depois foi transportada para Roma”. (Aqui cabe uma observação: não li os jornais inteiros, apenas o apanhado pelo historiador; por isso, não quero com as observações acima caracterizar as doutrinas dos jornais, mas registrar as idéias que estavam no ar naquele momento e que surgem em suas páginas).

 

O jornal nos descreve o cenário da Praça da República, endereço do monumento: são 200 bandeiras de diversas nações, “bandeirolas e festões”, “iluminação feérica”, com nove lâmpadas de “grande força”, além das regulares (todas providenciadas pela Companhia City Improvements), coreto, gradil, arquibancada “embandeirada”, esforço de relações públicas dirigido pelo senhor J. Bernils, da Casa Relâmpago.

 

Foto da Praça de República após a inauguração 

(acervo de José Carlos Silvares)

 

A expectativa era grande: às 13 horas do dia 26 era esperado um trem especial com convidados de São Paulo, inclusive o orador oficial da cerimônia, Freitas Guimarães. Ainda pela manhã, chegaria no porto o navio Savoia, que trazia do Rio de Janeiro o encarregado nos Negócios de Portugal, representando o Rei Dom Carlos.

 

O Cidade de Santos trazia ainda o programa a ser executado pela Banda Municipal, com hinos portugueses, hino à proclamação da República, Acosta, Carlos Gomes (Protofonia do Guarany) e Almeida Prado (Fantasia da Mágica Ângelus), entre outros internacionais, tendo como encerramento o hino brasileiro.

 

Após o conteúdo do programa, a transcrição passa para o presente. E aí vejo duas explicações: ou é uma nova transcrição, de um jornal posterior à inauguração; ou o texto, ainda que tenha sido impresso como se fosse citação (com recuo, como aqui no PortoGente), é na verdade do próprio Waldir, que aí, sim, assume a narração no tempo presente da reconstituição. Nessa parte, sabemos do coreto que escondia a demolição da antiga Matriz, da presença dos cônsules da Rússia, Alemanha, Suécia, Inglaterra, Espanha e Áustria, e ainda juizes, o inspetor da alfândega, o comandante da escola de Aprendizes de Marinheiros, o Capitão do Porto, a Associação Comercial de Santos e imprensa.

 

O texto ressalta a chegada do delegado de polícia escoltado por ordenanças da cavalaria e do diplomata português, “elegantemente vestido de casaca, cravo branco na lapela, cartola alta na cabeça”.

 

No discurso do orador, uma ilustração da vida de Braz Cubas, “homem ativo, audaz e de ânimo desassombrado para os grandes empreendimentos”, como a fundação da cidade. Aqui o mito fundador estimula a formação do imaginário de cidade do comércio:

 

Esta é a terra em que aprendi a ser forte e desassombrado; de cujo comércio modelo recebi memoráveis lições de probidade e honra; terra onde os negócios contratados verbalmente têm a mesma garantia daqueles que são reduzidos a escrito pelos officiaes que tem fé pública.

 

Que beleza de Santos, não é? Uma cidade tida, ainda conforme o orador, como um “belo jardim da Europa à beira-mar plantado”.

 

Em seguida, subiu ao coreto o poeta e jornalista Alberto Veiga: “Se é permitido a um santista ocupar por alguns momentos [a] atenção dos habitantes de sua terra, peço a palavra”. Sua intenção era registrar que a construção do monumento é mérito do comendador Alfaya Rodrigues, que em 1887, ainda no Império, havia apresentado a idéia à Câmara Municipal. A cerimônia ainda contou com a leitura de agradecimento ao cônsul brasileiro em Gênova, terra do escultor contratado, pelo apoio e relações travadas com o artista e seus representantes italianos.

 

Por meio de uma nota fiscal, Waldir ainda nos informa os valores do lunch oferecido pela Câmara aos convidados (260$000) e o cardápio: 150 gramas de presunto, 150 gramas de caviar, 150 de patê “Fom Grãs”, 150 de queijo prato, duas caixas de cerveja Antarctica, quatro barris de Chop Pilsenn Munchen, além de “ornamentação e serviço do pessoal extra”.

 

Epílogo

Waldir Rueda finaliza os dois capítulos que tratam da história e da construção do monumento com uma precisa imagem do simbolismo daquela inauguração.

 

Durante os meses seguintes daquele ano de 1908, a estátua de Braz Cubas foi muito visitada pelo povo. A imprensa não se fartava de elogiar a obra artística do escultor italiano Lorenzo Mazza.

Era o primeiro grande monumento que surgia em Santos.

Após este evento, a vida cotidiana de Santos nunca mais seria a mesma. Por muito tempo, a Companhia The City of Santos Improvements Cº Limited iluminou os candelabros do monumento a Braz Cubas.

 

A profusão de nomes e presenças estrangeiras, a ascensão ao poder por um novo grupo, as ruínas da antiga Matriz e a inauguração do monumento revelam a multiplicidade de eventos simultâneos que formam a história, relacionados ou não entre si (essa é uma questão para a “alma coletiva”, ou espírito dos tempos). Nesse aspecto podemos lembrar também da inauguração do canal 1, no ano anterior, e da ordem, também de 1908, de construção da inspetoria e residência do inspetor da Companhia Docas de Santos.

 

Era a cidade no início das transformações urbanas que a moldaram do jeito que é hoje.

 

Referência:

Waldir Rueda. Braz Cubas: homenagem a uma vida. Santos: Comunnicar, 2007.

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