Quinta, 02 Mai 2024

Os livros contam mais do que as histórias que lemos em suas páginas. Ficcionais ou reais, tanto faz. Há uma série de elementos que podem ser lidos como documentos que contam a história do momento da publicação desses objetos: são eles as orelhas, os prefácios, textos de apresentação, o local em que a obra foi publicada e até as imagens da capa. É o que Umberto Eco chama de paratexto, isto é, tudo aquilo que faz parte do livro, mas não faz parte da obra.

 

Hoje veremos o que dizem os paratextos de Braz Cubas: homenagem a uma vida, do historiador Waldir Rueda, destino dos dois últimos artigos de Porto Literário (De homem a monumento, parte 1 e parte 2).

 

Os paratextos da biografia de Braz Cubas nos oferecem uma amostra de algumas instituições (num sentido amplo) que organizam o conhecimento por meio das letras: a Academia (pela pesquisa), o Estado (pelas leis e normas), a literatura (pela invenção). Veremos como cada um de seus representantes lida de forma diversa com o conteúdo da obra, que é um só.

 

A Academia

Na primeira orelha, o universo da pesquisa de Waldir nos é apresentado pela professora de História Yza Fava de Oliveira, da Universidade Católica de Santos (UniSantos). Em seu texto, a historiadora lembra da inclinação de Waldir para a pesquisa histórica ainda na faculdade, justamente na elaboração de um estudo sobre o monumento a Braz Cubas, para, logo em seguida, listar alguns dos arquivos visitados por Waldir durante a realização da biografia (Arquivos do Estado de São Paulo, Fórum de Santos, Cúria Diocesana, Institutos Históricos e Geográficos de Santos e São Vicente, entre outros), “importantes fontes documentais” sobre “o prestígio, o poder e riqueza de Braz Cubas, sua ligação com Santo André, Mogi das Cruzes, e como se tornou um dos pioneiros do Movimento das Bandeiras ao seguir, em 1559, para o sertão, a procura de ouro e pedras preciosas”.

 

Yza Fava de Oliveira destaca também a genealogia da família Cubas, levantada minuciosamente pelo autor. Mais à frente, ela cita a contribuição do livro à valorização do patrimônio histórico ao resgatar o processo de construção do monumento a Braz Cubas.

 

O paratexto do autor

Após a ficha catalográfica, temos a dedicatória e, em epígrafe ao livro, um poema de Olavo Bilac, A Pátria, cujos versos “Quem com o seu suor a fecunda e umedece / Vê pago o seu esforço, e é feliz, e enriquece!” ecoam o perfil de poder e riqueza de Braz Cubas adiantado por Yza Fava.

 

O Estado

Em seguida, é a vez do prefeito João Paulo Tavares Papa, responsável pela apresentação do livro.

 

Antes de tudo, fica registrado que a prefeitura comprou 500 exemplares de Braz Cubas: homenagem a uma vida, o que mostra a importância que a obra de Waldir Rueda terá no ensino da história da cidade nos próximos anos.

 

Ao invés de “arquivos”, “pesquisa”, “fontes documentais”, o prefeito usa um vocabulário bem menos acadêmico para descrever a obra, um trabalho de “porte, envergadura e amplitude”. O prefeito busca também localizar os possíveis interessados pelo livro, partindo da academia e se dirigindo para toda a sociedade: “historiadores, pesquisadores, estudantes de todos os níveis, escritores, intelectuais, cientistas, jornalistas, professores, homens públicos”, enfim, todos os “interessados” na “magnífica e exemplar história desta terra que ensinou à Pátria, a caridade e a liberdade”. Neste trecho, em que são repetidas as palavras do brasão do município, assistimos à operação ideológica na qual o elogio ao livro se transforma em elogio à cidade que governa.

 

A palavra “magnífico” volta no último parágrafo para qualificar o trabalho, um “relato de uma vida extraordinária”, um “belíssimo presente a todos nós das terras de Enguaguaçu”, o nome que estas terras tinham antes dos portugueses, nova operação, desta vez ligando o momento da publicação do livro à fundação da vila.

 

A Academia, de novo

Logo depois, no prefácio, a mestra e doutora em História Wilma Therezinha Fernandes de Andrade, coordenadora do Centro de Documentação da Baixada Santista da Unisantos, ao tratar da inauguração do monumento, creio que explica também o momento de seu centenário:

 

Inaugurações são momentos de epifanias cívicas: concretizam memórias e ideologias de valores. Essas visuais homenagens representam a necessidade humana de construir sociedades política e socialmente estruturadas. Os monumentos expressam gratidão, iniciativa, poder e arte. São signos que documentam o pensamento de uma época.

 

Também ex-professora de Waldir, ela inicia seu texto localizando a obra no presente (devemos lembrar que o lançamento do livro em 25 de janeiro, um dia antes do aniversário da cidade, fez parte das comemorações dos 100 anos do monumento).

 

No segundo parágrafo, ela escreve que cada livro tem sua história e, assim como a Yza Fava, registra os primeiros passos de Waldir na pesquisa ainda durante a graduação e destaca a “inclinação para a prática investigativa” do autor que, em sua pesquisa, procurou “elucidar a vida de uma das principais personalidades da História paulista e fluminense do século XVI”.

 

Ao longo de seu texto, a professora avança nas questões de pesquisa: avalia que o autor trabalhou com a micro-história e discute sua decisão de transcrever para o leitor uma série de documentos escritos e iconográficos. No final, ela revela um pouco das motivações do autor e registra o novo status (no bom sentido) do historiador:

 

Duvido que Waldir pare por aqui. Sua procura pela certeza histórica (não cabe aqui discutir se isso é possível) o fará continuar na investigação do passado santista.

Não é preciso mais para que se reconheça o valor desta obra.

Fruto da persistência, o livro revela o caminhante em busca do novo no passado e coloca o Autor no quadro dos pesquisadores e historiadores da História de Santos e região.

 

O paratexto ainda contém novas palavras do autor: os nomes que recebem os agradecimentos (a lista de uma página revela o desprendimento e a humildade que todo pesquisador de verdade trata qualquer colaboração) e uma breve introdução, seguida por 300 páginas de história.

 

A origem

Virada a última página do livro, ainda podemos ler dois outros paratextos. Na segunda orelha, o juiz de Direito Messias Cocca nos apresenta o autor: sabemos onde e quando nasceu, sua atuação em defesa do patrimônio histórico e sua trajetória profissional, além seu amor pela música clássica e de sua dedicação ao violino. A presença no paratexto de Messias Cocca, financiador e detentor dos direitos desta primeira edição (informação de ficha catalográfica), revela que as editoras locais e nacionais não estavam prontas ou não quiseram publicar o estudo (isso sem contar o poder público, ainda que a prefeitura tenha adquirido seus 500 exemplares e a câmara municipal outros 200, mas uma coisa é difusão, outra é a publicação).

 

A Literatura

Na contracapa é a vez do escritor Flávio Viegas Amoreira toma o paratexto. O mito fundador, evocado pelo prefeito na apresentação, retorna em chave literária:

 

Braz Cubas representa nosso ancestral mítico, herói fundador de uma terra com alma ampla: sentimento atlântico do mundo, nosso Ulisses arcano, errante navegante, legou ao Brasil esse cais reentrante anunciando a civilização nos trópicos.

 

No período acima, lemos referências à Odisséia de Homero, à canção Terra de Caetano Veloso (“errante navegante”) e às dezenas de obras da sociologia e da história que tratam das possibilidades e das utopias de uma civilização nos trópicos.

Flávio também é dado às operações textuais, transformando um componente da pesquisa (“documento”) em gênero literário:

 

Li este documento como um épico da nobre raça santense.

 

O “santense” no lugar de santista remete também às formas passadas do tratamento aos habitantes da cidade, outra operação que colabora para a envergadura mítica da frase.

 

Livre das necessidades de precisão dos textos acadêmicos ou dos compromissos de representatividade do poder público, coube ao escritor o elogio mais bonito (no meu entender) ao autor da biografia:

 

Só o Mar é mais antiga testemunha de Braz Cubas e de seu glorioso fado.

 

Sem amarras, o texto inventivo de Flávio Viegas Amoreira ainda produz um trocadilho com uma das principais (para muitos, a principal) obra da ficção brasileira, o Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis:

 

Memórias prósperas os que sucedem Braz anunciarão...

 

Epílogo

Pierre Bordieu, sociólogo francês, desenvolveu o conceito dos campos e subcampos que compõem a sociedade. Exemplos são o campo econômico e os subcampos financeiro e produtivo; o campo político e os subcampos partidário, institucional, legislativo; o campo religioso e os subcampos das religiões; o campo cultural e os subcampos da academia, das artes, do jornalismo, etc... Todos eles em ora em conflito, confluência, tensão ou divergência contínua ao longo da história.

 

O que mostra o paratexto de Braz Cubas: homenagem a uma vida é exatamente isso, um raio-x dos campos sociais de Santos.

 

Referências

Waldir Rueda. Braz Cubas: homenagem a uma vida. Santos: Comunnicar, 2007.

Pierre Bordieu. A economia das trocas simbólicas. Introdução, organização e seleção de Sergio Micelli. 6ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2005.

Pierre Bordieu. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. 2ª edição.Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.

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