Quinta, 02 Mai 2024

I

Em entrevistas e nos seus ensaios literários, Ricardo Piglia sustenta que o gênero policial ganha escritores e leitores ao longo do século XX por traduzir e projetar as tensões políticas e de busca pelo poder nas sociedades. Se essas tensões pudessem ser medidas como terremotos, o negócio do crime seria onde a terra racha. A linguagem do crime mostra que só recebe atenção quem fala em tom ameaçador. Essa linguagem de força falada tanto por autoridades como por transgressores tem também suas contraposições: a linguagem jornalística, que seleciona os discursos para o consumo da informação, e a linguagem literária, pela qual Ricardo Piglia recria, confronta e concilia as duas anteriores em Dinheiro Queimado, obra criada a partir da leitura de uma nota de jornal sobre o assalto ao carro forte da prefeitura de San Fernando em 1965, não mais importante que qualquer nota colhida no noticiário nos últimos dias.

 

Antes de tudo, uma nota de jornal é uma boa matéria-prima para a ficção porque fornece indicações para uma trama que será preenchida posteriormente pelo escritor e que vai ocupar o lugar do que não foi publicado pelo jornal por falta de espaço ou de interesse do editor. Um exemplo é uma matéria de alguns anos atrás sobre uma trama digna de Jorge Luis Borges: uma série de assaltos a bibliotecas públicas.

 

A matéria, publicada na Folha de S. Paulo em sete de outubro de 2003, é assinada por Paulo Peixoto, então da Agência Folha em Belo Horizonte. A chamada é “Polícia” e o título “Preso acusado de furtar livros raros de bibliotecas”. O primeiro parágrafo (o lead, na terminologia jornalística), é o seguinte:

 

A Polícia Federal em Minas Gerais prendeu na sexta-feira, em Belo Horizonte, um homem acusado de furtar mais de uma centena de livros de três bibliotecas da Universidade Federal de Minas Gerais. Entre as obras furtadas estariam algumas raras, editadas nos séculos 18 e 19.

 

Na entrevista ao jornal, o delegado diz que o acusado é um tradutor e revisor desempregado que sentia um “impulso irresistível” para roubar as obras. A trama da investigação policial é recortada por retratos falados feitos por livreiros e donos de sebos. Entrelaçando a questão social do desemprego com a profissão do ladrão, uma versão ficcionalizada poderia encarar o roubo dos livros como mais uma metáfora para as questões de tradução, por exemplo. Enfim, este exemplo é só para demonstrar que a narração jornalística, até pelo seu ritmo industrial diário, não esgota uma história.

 

Outro escritor argentino, Juan José Saer, no texto A literatura e as novas linguagens, incluído no volume América Latina em sua literatura, mostra o desenvolvimento das relações institucionais entre literatura e comunicação de massa. Ali ele lembra que o jornalismo tanto busca o status de literatura – lembremos do gênero jornalismo literário – quanto serve ele próprio de motivo para a ficção. Nesse contato de mão dupla, para Saer, a literatura se contamina pela indústria cultural e se reinventa. Ele lembra que a formação dos escritores, em alguns casos desde a infância, passa pelo interesse em cinema, pelas populares narrativas policiais e até pelos quadrinhos das revistas de ficção científica. Para Saer, a literatura do século XX latino-americano foi escrita “num processo paralelo ao desenvolvimento da sociedade de massas, de sua cultura e de seus meios de informação, e os escritores que começam a escrever nos últimos vinte anos (o texto é de 1979), fazem-no no interior de uma cultura de massas que em grande parte já se consolidou. Por sua origem e formação, os escritores da América Latina estão vinculados a essa cultura, mesmo quando mantêm uma relação ambivalente, que às vezes supõe a rejeição violenta ou a ignorância quase perfeita”.

 

Essas relações são complementadas por outro argentino, o intelectual Nestor García Canclini que, em Culturas Híbridas, aponta que, por falta de um mercado de massas para a literatura, os escritores acabam dependendo financeiramente dos meios de comunicação de massa e para sobreviver trabalham como jornalistas, colunistas, colaboradores, roteiristas de cinema ou críticos culturais.

 

Saer destaca História universal da infâmia, de Jorge Luis Borges, como exemplo desta contaminação: uma série de narrações para a Revista Multicolor de los Sábados, suplemento literário do jornal Crítica, para o qual Borges escreveu entre agosto de 1933, desde o primeiro número, até setembro de 1934. Seu primeiro livro de contos, de 1935, acaba sendo esta coletânea de textos para jornal. Saer enxerga nestes contos elementos típicos da cultura de massas: aventuras, exotismo e arquetipificação épica.

 

Apesar desta avaliação de Saer, as relações de Borges com a comunicação de massa e os meios jornalísticos não podem ser reduzidas à questão da influência. Canclini lembra que nos últimos anos de vida, já uma celebridade da literatura, Borges foi mais que uma obra que se lê, foi uma “biografia que se divulga”. Ao enumerar passagens e frases de Borges sobre a modernidade na literatura ou sobre a participação em grupos literários, Canclini percebe um Borges que, mais que contaminado pela indústria cultural, dialoga com ela e aproveita o espaço conquistado transformando-o em mais um gênero:

 

Deve-se levar a sério essas entrevistas e declarações ocasionais de Borges que, de um modo oblíquo, são parte de sua obra. Assim como ele foi sensível desde seus primeiros anos, que também eram os primeiros da indústria cultural, às matrizes narrativas e às táticas de reelaboração semântica do cinema (lembremos seus artigos sobre o western e os filmes policiais, seu deslumbramento perante Hollywood), entendeu que a fortuna crítica, a rede de leituras que se fazem de um escritor, é construída tanta em relação à obra como nessas outras relações públicas que propiciam os meios massivos. Então, incorpora à sua atuação como escritor um gênero específico desse espaço aparentemente extraliterário: as declarações aos jornalistas.

 

Canclini considera Ricardo Piglia um sucessor de Borges neste tipo de utilização dos meios massivos, exercendo nas entrevistas “a tarefa de ficcionalizar as afirmações pessoais, confundir a diferença entre discurso crítico e ficção”. É o que ele faz, por exemplo, na introdução e no epílogo dos ensaios de Formas Breves.

 

II

Depois desta avaliação feita por Canclini dos papéis de Borges e Piglia em relação aos meios de comunicação, vamos a falas do próprio Piglia sobre o assunto. Em Diálogos, uma transcrição de entrevistas literárias na Faculdade do Litoral, ele e Saer, com a presença de jornalistas e estudantes, trocam impressões sobre o mosaico de influências, autores e obras e suas relações com a política, com o local e a literatura universal. Para Piglia, os escritores contemporâneos reagem à cultura de massas por três tipos de respostas:

 

A primeira é a poética negativa de rechaço às linguagens estereotipadas que circulam na cultura de massas, da qual Beckett é o principal exemplo e o silêncio, o principal resultado. A 2ª resposta é o encontro entre a cultura de massas e a alta cultura, uma estratégia que tenta romper com os limites estritos do romance, definidos por professores, críticos, estudantes de literatura e outros escritores. Esta tentativa tem o objetivo de recuperar o público de livros do século XIX perdido para os veículos eletrônicos da cultura de massas. É a estratégia, sempre de acordo com Piglia, da literatura pós-moderna.

 

E a 3ª resposta é a renovação da narração pelo relato dos fatos reais com a interferência do escritor. É a resposta adotada por Piglia:

 

Trabalho com os gêneros entendendo isto como uma recuperação até de convenções de estereótipos narrativos, que será em algum sentido o modo de se aproximar de uma espécie de demanda implícita de narratividade.

 

Isso quer dizer que os gêneros atuam como se dessem conta da narração por si mesmos, restando ao escritor escolher as histórias que estão para ser contadas: “Trabalhar com gêneros populares pode permitir à literatura romper com esta sorte de cerco de leitores especializados e avançar até espaços diferentes”, diagnostica o autor de Dinheiro Queimado.

 

III - O gênero policial

Em entrevista à Folha de S. Paulo publicada em junho daquele mesmmo ano, Piglia discorre sobre o gênero policial, que desde Edgar Allan Poe tem sido bem recebido pelo público:

 

Acredito que foi por causa de seu modo de ver a sociedade a partir do crime e de estabelecer alguns vínculos entre lei e verdade, entre dinheiro e moralidade, entre poder e corrupção que o gênero policial conseguiu tomar conta do imaginário coletivo do último século e meio.

 

Em O laboratório do escritor, ele complementa a explicação: “O dinheiro que legisla a moral e apóia a lei é a única ’’razão’’ destes relatos onde tudo se paga”. É o interesse em conseguir o dinheiro de forma violenta que fornece a cada personagem um posicionamento próprio na trama policial. Essa espiral em torno da grana é um vasto panorama de temas, cenas, metáforas, e dicas para a literatura projetar as demais relações da sociedade.

 

Na mesma entrevista, ele diz que Dinheiro Queimado, de 1997, é o desenvolvimento literário deste debate. Um exemplo deste movimento de espiral é momento que antecede o assalto, quando Piglia apresenta os guardas do carro forte na página 27:

 

No banco traseiro iam os guardas, uns sujeitos com cara de sono, gordos, com as armas em cima das pernas, ex-agentes, antigos tiras, suboficiais da reserva, sempre tomando conta do dinheiro alheio, das mulheres alheias, dos carros importados, das mansões, cães fiéis, de toda confiança, armados, sempre apetrechados para manter a ordem...

 

O título do romance por si só indica o destino, a fatalidade e a mancada de se queimar mais de 500 mil dólares nos dias de hoje. Depois que os assaltantes carbonizam o dinheiro sabem que não há mais possibilidade de retorno.  É o “gesto metafórico”, como Piglia explica no epílogo, quando se realiza a tragédia.

 

As relações entre crime e política não se resumem ao oferecimento de temas para o telescópio da literatura. Crime e política realmente se interferem um no outro. No romance, a dica do assalto ao carro pagador da prefeitura de San Fernando vem de Nino Ñocito, descrito na página 19 como “um cacique do peronismo proscrito da Zona Norte, dirigente da Unión Popular e presidente interino do Conselho Municipal de San Fernando”. A informação é vendida por parte do butim, mas os assaltantes decidem fugir sem pagar o pedágio. A operação é estruturada graças ao contato que Malito teve na cadeia com prisioneiros políticos: aparelhos, rotas alternativas de fuga e contatos nas fronteiras são alguns dos termos e ferramentas que os ladrões emprestam do mundo da luta política clandestina.

 

IV - A narrativa jornalística

Da trama, o jornalismo não é só fonte. É personagem. Equipes de TV e rádio, folhetins policiais e focas das editorias de polícia dos bons jornais da classe média, que publicam também os classificados, falam todos ali. Emílio Renzi, alter ego de Piglia em outros textos de ficção, também está cobrindo a perseguição para o jornal El Mundo. A presença de Renzi na trama tirada da realidade reflete aquela terceira resposta dos escritores à comunicação de massa: a da renovação da narração pelo relato dos fatos reais na qual o escritor também se coloca.

 

Esta tensão está demonstrada no epílogo da obra. Ao dizer que havia escrito uma primeira versão do romance no início da década de 70, Piglia conta que retomou a história em 1995 tentando ser absolutamente fiel à verdade dos fatos. Só que mais à frente, no mesmo parágrafo, o enfoque muda. A distância dos 30 anos do acontecimento do roubo à realização do romance havia levado Piglia a tratar a história como o relato de um sonho.

 

V - As interferências do autor

Piglia, através de Emílio Renzi, interfere em dois momentos na sucessão dos fatos para falar de literatura e linguagem: no primeiro, na página 78, ao classificar o assalto ao carro forte como parte do gênero literário da tragédia: “Seja como for, o destino havia começado a montar sua trama, a tecer sua intriga, a entrelaçar num ponto (e isso escreveu o rapaz que fazia reportagem policial para o El Mundo) os fios soltos daquilo que os antigos gregos chamaram ’’mythos’’”. No outro momento, na página 133, Renzi chega à conclusão sobre o quanto é inacessível para o jornalismo e para a literatura a linguagem violenta de policiais e criminosos:

 

Falavam assim, eram mais sujos e mais desumanos para falar do que aqueles tiras tarimbados em inventar insultos que humilhavam os presos até transformá-los em bonecos disformes. Sujeitos da pesada, os pesos pesados da pesada, que se arrebentavam no pau-de-arara, que se entregavam no final, depois de ouvir Silva xingá-los e dar-lhes choques elétricos durante horas, para fazê-los falar. Os restos mortais das palavras que as mulheres e os homens empregam no quarto de dormir e nas lojas e nos banheiros, porque a polícia e os bandidos (pensava Renzi) são os únicos que sabem fazer das palavras objetos vivos, agulhas que se enterram na carne e destroem a alma da gente como um ovo que se quebra na borda da frigideira.

 

Essa barreira de linguagem não impede, porém, alguns jornalistas de participar da tentativa de linchamento do assaltante sobrevivente na página 172: “Uns quatro ou cinco policiais e jornalistas o espancaram com suas armas e câmeras”. As câmaras de vídeo, máquinas narrativas a serviço do jornalismo, tornam-se na cena máquinas de violência a serviço do justiçamento.

 

Nos Diálogos, que são conversas de 1985, Saer fala sobre a obra de Piglia e antecipa esta tensão entre real e sonho do epílogo de Dinheiro Queimado:

 

O elemento forte nos textos de Piglia, que são os dois romances e o [conto] Homenagem a Roberto Arlt é a falsa objetividade.

 

Saer sustenta que Piglia tem uma maneira de fazer literatura como se estivesse fazendo mais que literatura a partir de uma espécie de reflexão sobre o ato de escrever – exemplo é a intervenção de Renzi/Piglia. No conto A caixa de vidro, por exemplo, Saer diz que encontrou mais de dez gêneros narrativos em seis ou sete páginas. Voltamos aí novamente àquela terceira resposta de Piglia, em que os gêneros são apresentados como máquinas autônomas de narração.

 

O próprio jornalismo é uma destas máquinas de narração, com a missão de responder quem fez o quê, onde, como e porquê. Quando a máquina narrativa do jornalismo é posta para funcionar para recriar a máquina narrativa do crime, temos o relato das páginas policiais, do qual a contaminação do texto jornalístico pela linguagem dos boletins de ocorrência é uma característica e conseqüência deste encontro. Abro espaço agora para Reynaldo Damázio, que escreveu a resenha sobre Dinheiro Queimado para a revista Cult:

 

Diante da avidez devoradora da mídia, qualquer desumanidade se torna verossímil, assimilável, esperada. O consumo da violência é catártico.

 

Damázio localiza o romance de Piglia na tradição de A sangue frio, de Truman Capote, também uma reconstituição de um crime e um dos pontos altos do novo jornalismo norte-americano dos anos 60, e de Notícia de um seqüestro, de Gabriel Garcia Marquéz, com a alusão ao mundo jornalístico já em seu título.

 

A análise de Saer também situa outra relação entre jornalismo e literatura. Esta, por pertencer à “alta cultura”, exerce “o papel de uma espécie de superego” dos meios de comunicação ao mesmo tempo em que estes, ao estimular a fantasia, na seleção de discursos em que consiste sua busca pela verdade, agem como “o inimigo mortal da literatura”. Saer traz uma frase de Willian Barret que exemplifica essa relação: “Quanto mais eficiente e competente se tornar o jornalismo, maior será sua ameaça à mente do público”.

 

A relação dos protagonistas com a imprensa é dupla. Logo após o assalto ao carro forte da prefeitura de San Fernando, um dos assaltantes reclama que o noticiário não mostra o que eles pensam da situação. Dias depois, os três param diante da televisão que mostra ao vivo o tiroteio que trocam com policiais de Montevidéo e Buenos Aires em uma rua familiar da capital do Uruguai.

 

VI - Teoria da conspiração

Os personagens da trama são movidos também por outro motivo de interesse de Piglia, a teoria da conspiração e o complô. O Gaúcho Dorda, por exemplo, desde o infância ouve na cabeça mulheres lhe dando ordens. Ele é o que acha que tudo vai dar errado antes da operação, que alguém entregou o negócio. Ele comemora a morte de cada policial como uma vitória pessoal porque acredita que todos eles o caçam. Mesmo assim, saboreia a ação que a adversidade lhe fornece. Malito, o líder do grupo, acredita que todos os telefones de Buenos Aires estivessem grampeados: “Não podia ver a luz do sol, não podia ver muita gente junta, o tempo todo estava lavando as mãos com álcool puro” (página 13).

 

É assim que a teoria da conspiração toma o lugar do destino nas relações do homem moderno, quando a literatura retoma a tragédia pelo gênero narrativo policial, que deixa de ser o duelo entre transgressor e autoridade ou entre o detetive e o criminoso e se torna a trama de uma grande complô contra o “sujeito privado”. É o que acontece a uma das vítimas do assalto ao carro forte, o tesoureiro Martínez Tobar, na página 26:

 

Quando chegou à rua, não viu nada; ninguém vê nada nos momentos que antecedem um assalto. Há um vento que se levanta de repente e o sujeito está caído, com uma paulada na cabeça, sem saber o que aconteceu. Quando alguém vê movimentação suspeita, é um apavorado que já sofreu alguma coisa antes e que agora imagina que aquilo vai lhe acontecer de novo.

 

Esse apavorado é a testemunha ou a vítima sobrevivente de um crime anterior. Como ocorre nas narrativas de testemunho: “conta uma história quem pode contar”. Assim, as testemunhas em Dinheiro Queimado, tanto o senhor que vai abrir a loja e tem seu carro roubado pelos assaltantes durante a fuga como a empregada da padaria que percebe uma movimentação suspeita e chama a polícia são pessoas que tiveram a oportunidade de ter uma história para contar pelo resto de suas vidas.

 

Lúcia Passero, a empregada da padaria, declara depois que a cena de tiroteio que presenciara na rua era “melhor do que no cinema”.  Está em ação o conceito de Piglia máquinas narrativas acionando novas narrativas.

 

Referências

Ricardo Piglia. Dinheiro Queimado. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

Juan José Saer. “A literatura e as novas linguagens”. In: César Fernandez Moreno e outros. América Latina em sua literatura. São Paulo, Unesco/Perspectiva, 1979.

Ricardo Piglia e Juan José Saer. Diálogos. Centro de Publicaciones. Universidad Nacional del Litoral. Santa Fe, 1995. 

Nestor García Canclini. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.  Edusp, 2000.

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