Sexta, 03 Mai 2024

Recebi do escritor Marcelo Ariel um exemplar de seu segundo livro, Tratado dos anjos afogados, que sai pela editora LetraSelvagem, ligada à associação de mesmo nome, criada para promover a linguagem literária para além dos padrões de mercado.

 

O livro reúne poemas escritos nos últimos 20 anos pelo autor cubatense. Ariel é um perigo para os críticos porque é muito fácil colocar nele o rótulo de poeta marginal ou coisa que o valha. Tendo Cubatão como um dos principais motivos de sua obra, então, aí que quase torna-se obrigatório falar em denúncia social e coisas do tipo.

 

Por enquanto, não digo nada de novo. Na apresentação de seu primeiro livro, Me enterrem com a minha AR-15 (Scherzo-Rajada), o poeta e crítico Ademir Demarchi já havia alertado:

 

A literatura que Marcelo Ariel vem escrevendo reflete muito dessa realidade [de Cubatão e das favelas da Baixada Santista], sem cair na mímese do real e crueza de texto do neo-realismo vigente na literatura brasileira contemporânea.

 

No lançamento do Me enterrem... o próprio Marcelo Ariel negou o título de autor marginal: “Eu não acredito em marginalidade. Marginalidade é coisa de Brasília” (ver A Literatura ecológica de Dulcinéia Catadora e Dois autores lêem o presente). Esse neo-realismo a que se refere Demarchi é aquele, mudando das letras para a película, de filmes como Cidade de Deus ou Tropa de Elite. Particularmente, considero um realismo já desgastado. Apesar de Ariel narrar a tragédia de Vila Socó, dos comandos que tomam as favelas, dos massacres dos descartáveis, o real em sua obra é aquele da própria poesia e da literatura, isto é, são as opções estéticas do autor que definem o poema, e não as condições sociais. Exemplo é o trecho a seguir de Caranguejos aplaudem Nagasaki, uma narrativa sobre a noite em que a Vila Socó queimou:   

 

Vila Socó
estacionou na História
ao lado de Pompéia, Joelma e Andre Doria

Pensando nisso
ergo neste poema um memorial
para nós mesmos

vítimas do tempo
onde se movimenta a morte se espalhando na paisagem
como o gás
que também incendeia o sol
(bomba de extensão infinita)

 

Em relação aos acidentes e tragédias, os jornais costumam contar os mortos, e essa é sua função. Na poesia de Ariel, a dimensão da tragédia está na sua relação com Pompéia, não com a contabilidade funesta. Outra relação é com A Divina Comédia, de Dante Alighieri, por meio da única personagem do poema que tem nome, Beatriz, o mesmo da amada do autor italiano, transformada em personagem em sua principal obra.

 

É ela que guia Dante pelo Paraíso, mas na obra de Ariel Beatriz está no Inferno da Vila Socó:

 

Corpos em chamas se atiram na lama
mulheres e crianças primeiro
caranguejos aplaudem Nagasaki
bebê de oito meses é defumado
enquanto Beatriz
agora entende o poema derradeiro

Beatriz mãe solteira antes de morrer
deu um inútil pontapé na porta

 

Visitante da Biblioteca Pública de Cubatão desde os nove anos de idade, Ariel chega aos 40 com uma imensa carga poética e literária. As referências a outros autores e obras são contínuas (ainda que não afetem o entendimento de quem não conhece todos ou alguns dos autores citados); muitos autores tornam-se personagens, motivos literários ou indicações para os leitores. Os títulos de alguns poemas nos mostram como isso ocorre: Sonho que sou João Antônio sonhando que sou Fernando Pessoa, Com Miles Davis na Serra do Mar, Rimbaud Rock, No deserto com Paul Bowles, Paul Celan, Tolstoi no motel, Para Nick Drake, Um bilhete de Jane para Bowles, Dostoievski e Tolstoi, Para Gilberto Mendes, João Cabral lendo Orides Fontela e muito outros. 

 

Mas algumas coisas na obra de Marcelo Ariel me fazem lembrar de Jorge Luis Borges. Nos temas, dois são bem óbvios: a profusão de espelhos e de sonhos dentro de sonhos (e não são sonhos também espelhos?). Nos procedimentos, podemos anotar a reescrita, isto é, a mudança do texto entre as edições. O subtítulo do primeiro livro, (Scherzo-Rajada), dá nome à segunda parte do Tratado dos anjos afogados, enquanto Me enterrem com a minha AR-15 e seus poemas, muitos deles alterados, formam a sexta parte do livro.

 

Em Crime, jornalismo e crônica policial, escrevi sobre como o pensador argentino Nestor García Canclini notou que Borges se aproveitava das oportunidades de ser entrevistado para criar ficções. Para ele, uma entrevista era mais um gênero narrativo. Quem conversa com Ariel, acaba com essa mesma sensação, pelo menos é assim que eu fico toda vez que conversamos (e já vão alguns anos). Ariel não se comunica, ou melhor, ele não só se comunica. Expressões como “burocracia-morte”, “açougue-presídio” e “névoa-nada” aparecem em qualquer conversa que tenhamos com Ariel, assim como perguntas do quilate de “É melhor continuar / Sendo o fantasma de um poema ou em um poema?” ou “Eu sou a metáfora de uma galáxia ou a de um átomo?”.

 

Confraria

Marcelo Ariel é um dos escritores presentes no número especial de comemoração de dois anos da revista literária Confraria, lançada em Santos no espaço Corisco Mix na última quinta-feira, dia 28 de fevereiro. O evento contou com leituras do próprio Ariel, de Flávio Viegas Amoreira, outro nosso contemporâneo local-universal, e de dois dos editores da revista, Márcio-André e Victor Paes. Além de Ariel, que comparece com No deserto com Paul Bowles, a edição conta com poemas de Ferreira Gullar, Carlos Nejar, Ivo Barroso, Gonçalo M. Tavares; contos de Marcelino Freire, Fernando Bonassi, Nelson de Oliveira; além de textos inéditos de Manoel de Barros, Allen Ginsberg, Silviano Santiago, Régis Bonvicino.

 

 

Editada no Rio de Janeiro, em formato on line, a revista traz o seguinte propósito:

 

AOS NAVEGANTES DE PRIMEIRA VIAGEM

CONFRARIA é uma revista bimestral, editada pela Editora Confraria do Vento, com lançamento nos dias 15 dos meses ímpares (janeiro, março, maio, etc). A revista tem um compromisso primordial com a obra de arte em suas diversas manifestações, divulgando, criticando e discutindo. A proposta dos editores é publicar bons textos literários, críticos e ensaísticos, obras plásticas e musicais, tendo como único critério de seleção o vigor artístico e a discussão fomentada. Os ensaios se propõem a tratar de qualquer assunto que tenha relação com o fenômeno da obra de arte e da literatura, sempre esperando que sejam, de alguma, forma, instigantes. Quanto às obras literárias, publicamos, a cada número, contos e pequenas coletâneas poéticas. Da mesma forma, a cada número, a revista é ilustrada por um artista plástico diferente e por uma peça musical, como trilha sonora. Caso você seja compositor, artista plástico, escritor ou ensaísta, e tenha interesse de ser publicado pela revista CONFRARIA, seria uma honra para nós conhecermos o seu trabalho. Basta entrar na seção Envio de material e ler as normas.

 

O lançamento da revista em Santos, um dia antes de ser lançada em São Paulo, deve-se aos esforços de Flávio Viegas Amoreira, autor publicado pela editora carioca 7Letras e integrante do Conselho Editorial da Confraria.

 

Epílogo

Após o lançamento da revista, já na madrugada do dia 29, Marcelo Ariel vem com uma de suas observações em gênero literário quando duas participantes do evento decidem tirar os sapatos de salto para poderem caminhar de forma mais confortável até o ponto de ônibus na praia. Quando se apoiavam uma noutra, ele disse: “Parece um filme de Almodóvar com Bergman. O Bergman é por causa da dor”.

 

Fantástico!      

 

Referências

Marcelo Ariel. Tratado dos anjos afogados. Caraguatatuba: LetraSelvagem, 2008.

 

Marcelo Ariel. Me enterrem com a minha Ar 15 (Scherzo-Rajada). São Paulo: Dulcinéia Catadora, 2007.

 

Márcio-André, Ronaldo Ferrito, Victor Paes (organizadores). Confraria 2 anos. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2007.

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