Quinta, 02 Mai 2024

Uma maneira de contar a história do porto de Santos é contar a história de seu crescente isolamento em relação à cidade. Aqui, vamos tratar como o acesso ao cais aparece, em diferentes momentos, em três obras que serão colocadas em perspectiva.

 

I - O Cais da Cidade

A primeira é Cais de Santos, romance de 1939 de Alberto Leal. No título da primeira resenha que Porto Literário dedicou ao livro o destaque já ia para o acesso ao porto: Entrando no Porto pela porta do lado. No primeiro episódio do livro, conhecemos um garoto de 13 anos, José Praxedes. Ele é um morador do Paquetá que atravessa o portão que separa a cidade do porto para pescar sentado à beira do cais. A naturalidade dessa incursão pelo espaço portuário está no prosaico aceno que ele lança ao seu Quincas, operador do guindaste, que lhe devolve o cumprimento. A seguir, o cenário ali encontrado pelo adolescente:

 

À sua direita, enorme, um transatlântico da Mala Real Inglesa carregava cachos verdes de banana nanica, e o guindaste guinchava, uivava, girava, e descia pela abertura escancarada do porão, até a terceira coberta, a rede de cordas que os estivadores lá no fundo abriam e descarregavam, arrumando a carga, cacho sobre cacho.

O guindaste tornava a uivar, suspendia a rede vazia, que era descida sobre uma galera carregada de bananas, onde outros homens trabalhavam, suados e seminus.           

             

Como o título do livro (Cais de Santos) sugere, essa obra dos anos 30 mostra o cais como um espaço da cidade.

 

II - O repórter do porto

Já no final dos anos 40, o poeta Narciso de Andrade trabalhava como repórter da seção Vida Marítima, no jornal O Diário. Na introdução à coletânea de poemas de Narciso, Poesia sempre, o também escritor e crítico literário Adelto Gonçalves conta como era o cotidiano daquele repórter:

 

[Narciso] Amassava lama à porta dos armazéns, subia nos navios, conversava com os comandantes, ouvia os doqueiros, os estivadores, os carregadores que, em fila indiana, suportavam nos ombros sacos de 60 quilos de café, a subir e a descer dos vapores. Não havia dia em que não chegasse à redação com uma boa reportagem. “Como falava inglês e francês, não tinha dificuldade para conversar com o pessoal dos navios estrangeiros”, conta. “Naquela época, as grandes personalidades do mundo sempre passavam por aqui a bordo de navios de passageiros”.

 

Essa experiência do “chão do cais” (ver O porto de nossos dias e o chão do cais) aparece no poema Cais. No segundo trecho, lemos o quanto próximo do cais está o repórter:

 

A água comove a pedra
que parece fremir levemente
 

 

III - As portas fechadas do porto da globalização

Em 2002, é publicado Cais. Os poemas do contemporâneo Alberto Martins tratam do porto como parte da natureza, uma contribuição humana à paisagem. Escrito quando o cais é vedado aos pedestres e passantes (até os repórteres hoje precisam de autorização para entrar no porto), o livro de Alberto Martins nos mostra sim a proximidade que podemos ter com os navios que chegam ao porto, mas essa proximidade só nos é permitida na Ponta da Praia, na entrada do canal do porto, onde o cais ainda não começou.

 

No porto das operações das concessionários, se quisermos ver navios, teremos de vê-los Da Ponta da Praia. É dali que podemos notar os detalhes do casco de cada navio que passa:

 

É úmido. Está coberto
de cracas e a ferrugem
que rói as chapas
rói a carga
é visível
da Ponta da Praia
a olho nu.

Da calçada vejo
a quina de aço
– feito cunha –
na paisagem:
a Pouca Farinha
o forte em ruínas
o Góes... e por aí vai,
devorando a outra margem.

Boa viagem.

 

Epílogo

Talvez por isso que as saídas dos cruzeiros reúnam tantas pessoas na Ponta da Praia – é a necessidade de ver de perto os navios, coisa que não fazemos mais à beira do cais.

 

Referências

Alberto Leal. Cais de Santos. Rio de Janeiro: Cooperativa Cultural Guanabara, 1939.

 

Narciso de Andrade. Poesia sempre. Santos: Unisanta, 2006.

 

Alberto Martins. Cais. São Paulo: Editora 34, 2002.

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