Terça, 21 Mai 2024

Em abril, durante breve visita a Belo Horizonte, encontrei na Librería Café, livraria especializada em títulos estrangeiros, o fascículo número 12 de uma série publicada sobre pintura argentina com reproduções de Miguel Carlos Victorica e Benito Quinquela Martín, o pintor da Boca, sobre quem escrevi em O pintor proletário do Porto de Buenos Aires.

 

O volume faz parte da coleção Pintura Argentina – Panorama del período, 1810-2000, da série Livros de Arte, que se propõe a compor reproduções de qualidade acompanhadas de notas e ensaios sobre a obra. O fascículo traz sete reproduções e detalhes da obra de Quinquela, com novas imagens do autor para serem exploradas a partir do Porto Literário.

 

Desgargando carbón, 1928, Teatro Regina,

Buenos Aires

 

Em algumas figuras, notamos como o corte destaca o aspecto monstruoso que tomam imensos objetos mecânicos como navios encostados de proas podres ou simples guindastes, como o detalhe de Desgargando carbón (1928), na qual uma boca de guindaste avança sobre homens e cargas em meio a uma diversidade de objetos que se multiplica numa tela de 4,5 por 2,63 metros pintada à óleo, na qual vemos centenas de trabalhadores do porto, navios, casas, armazéns, fumaças, águas, céus, numa paleta de planos de cores e pinceladas.

 

 

O guindastes monstruosos não são incomuns entre as pinturas do autor. Em algumas, na mesma posição, um deles é o protagonista, como em Descarga de carbón con Grampas, do mesmo ano, na qual sentimos o apetite do bicho. Como é um quadro de 2 por 2,2 metros, a bocarra do guindaste tem o tamanho de um focinho de cachorro.

 

Descarga de carbón con Grampas, 1928,

Museo Provincial de Bellas Artes Rosa

Galisteo de Rodríguez, Santa Fé

 

Nas duas pinturas seguintes, Quinquela nos oferece monstros mais paquidérmicos, como em Exclamación (1944), óleo sobre madeira de 1,25 por 1,05 metro:

 

Exclamación, 1944, Museo de Bellas

Artes de La Boca de Artistas Argentinos

Benito Quinquela Martín

 

Ou em Reposo del Hércules, de 1 metro por 0,9, outro óleo sobre madeira:

 

Reposo del Hércules, 1944, Museo de Bellas

Artes de La Boca de Artistas Argentinos

Benito Quinquela Martín

 

As mandíbulas retornam no tubarão abaixo:

 

Encuentro, 1964, óleo sobre

madeira, 98 x 89 cm

 

Epílogo

Os monstros do porto da Boca do pintor Quinquela Martín aparecem também no porto do Macuco do escritor Ranulpho Prata. No romance Navios Iluminados, ele descreveria o primeiro dia de funcionamento de uma grab. A obra é de 1937, portanto contemporânea do obra de Prata, publicada em espanhol na própria Buenos Aires em 1940:

 

O [guindaste] palmeira botou toda sua eletricidade, esticou o rabo possante e levantou a grab que lá se foi pelos ares, como uma aranha descomunal, emprocura do porão do cargueiro inglês Amberton, que trazia carvão de Cardiff.

 

O barco vinha de barriga cheia, à ímpar, a carga beijando a boca da escotilha. A máquina escancarou as mandíbulas medonhas, enterrou os dentes na massa negra e derramou na galera três toneladas de carvão de uma só vez. Chegara recentemente e eram as primeiras experiências que faziam. O pessoal da turma [de estivadores] 65 espiava, curioso, o manejo da bicha.

   

Uma vez notei como a obra de Quinquela se parecia com a de Prata pela forma como isolam o bairro portuário do resto da cidade, criando um distanciamento entre o cais e a vida urbana: físico, no caso da pintura tendo as fábricas urbanas como fundo; ou econômico, como as limitações de transporte do personagem do romance. Isso ocorreu no primeiro texto que escrevi sobre o pintor, As cores dos bairros portuários.

 

Tal ligação – digamos, sociológica – da distribuição do espaço entre as duas obras artísticas é assunto para a manga, mas o que não pode escapar é que aquilo que une as duas obras é o elemento puramente estético, isto é, o fato de ambos terem recorrido ao expressionismo da prosopopéia, aquela figura de linguagem do colegial que ocorre quando seres inanimados – no caso, guindastes e navios – são representados como animais.

 

É no próprio campo da arte, no exagero das tintas e na distribuição das cores, que as obras conversam. Mais que cenário social, essa é a história que têm em comum.

 

Referências

María Torres (coordenação editorial). Pintura Argentina – Quinquela y Victorica. Buenos Aires: Departamento de Promoción Cultural del Grupo Velox, 2001.

 

Quinquela en Mendoza. Catálogo da exposição no Centro Cultural Espacio Contemporáneo del Arte, set-out/2001. 

 

Ranulpho Prata. Navios Iluminados. Santos: Prefeitura Municipal de Santos e Scritta, 1996 (1ª edição 1937).

 

Ranulpho Prata. Vapores Iluminados. Traduzido para o espanhol por Benjamin del Garay. Buenos Aires: Editorial Claridad, 1940.

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