Terça, 21 Mai 2024

À primeira leitura, O Senhor Kraus, do português Gonçalo M. Tavares, não me pareceu à altura de O Senhor Brecht, O Senhor Juarroz e, principalmente, O Senhor Calvino. Os títulos referentes aos quatro senhores são de livros da coleção O Bairro, descrita uma vez aqui. Nesse bairro (veja imagem abaixo), que é a própria literatura, moram ainda, como nos mostra um desenho em cada um da série, os senhores Borges, Eliot, Duchamp, Balzac, Rimbaud, Wells, Corbusier e da senhora Woolf, entre outros.

 

 

O senhor Kraus escreve crônicas políticas no jornal da cidade. Num café, ele faz a seguinte anotação, bem a calhar nesse início de período eleitoral:

 

Observação a posteriori (1)

No contacto com a população mais simples, alguns políticos dão beijos na cara como quem do cais diz adeus ao barco que parte para nunca mais voltar.

 

Mais que uma idéia ou analogia para a relação do político com o eleitor, é interessante que a anotação nos informa que a cidade de tal bairro é nada mais que uma cidade portuária, isso ocorre por causa da materialidade desse bairro abstrato é exatamente a da letra impressa no papel. A partir do emprego por uma personagem de uma imagem portuária para descrever determinada situação, percorre-se um cais também na geografia urbana da ficção.

 

Mas a obra de Tavares não é de identidade portuária. A analogia é apenas uma das dezenas de comentários da personagem-cronista cujo nome referencia um autor real, como são todos os desse bairro. A anotação seguinte, escrita pelo autor logo em seguida à primeira, é mais dura:

 

Relação entre povo e políticos

Depois de uma campanha eleitoral animada, a grande vantagem de qualquer eleição democrática é a de o povo sair, finalmente, da sala de estar dos políticos.

É uma sensação de alívio que alguns eleitos descrevem como semelhante ao momento em que uma dor intensa, por qualquer razão obscura, termina.

 

A próxima, então!:

 

Observação a posteriori (2)

Os políticos, quando beijam velhos cidadãos, lembram a primeira dentada tímida do verme no corpo que já não tem meios para a fuga nem porta de saída.

 

As anotações e cenas com o senhor Kraus são as melhores do livro. Pena que apenas compõem intervalos entre a parte principal da obra, que são as conversas entre o Chefe de uma administração política (talvez o prefeito da cidade do bairro) e dois de seus auxiliares.

 

A minha falha em conhecer textos do Kraus escritor real repete a falha de também não conhecer Juarroz ou Brecht, mesmo assim, consegui notar as individualidades dos dois mundos literários mimetizadas em homônimas personagens-títulos (já com Calvino, a relação foi a de quem conhece um tanto do autor de Se um viajante numa noite de inverno). Embora não faltem boas idéias em O Senhor Kraus, a realização desse cenário foi menos inventiva que a das outras da série.

 

Cada um deles abarca um domínio da existência humana: o fantástico de Ítalo Calvino, o absurdo de Bertold Brecht (autor de Esperando Godot), a irrealidade do argentino Roberto Juarroz (autor de Poesia vertical). Já a sátira do jornalista e poeta austríaco Karl Kraus ficaria então prejudicada por Gonçalo M. Tavares ter escolhido usar o mundo político como massa literária. A pobreza inventiva do mundo político não teria mal influenciado o autor português no caso da escrita de O Senhor Kraus?

 

Parece que é o caso, mas isso só ocorre nesse livro. Fora da série do bairro, de Tavares temos também publicado no Brasil Um homem: Klaus Klump, em que a narrativa se debruça novamente no universo da política, no caso, o Estado-Nação, numa trama em que o país do protagonista é tomado por um exército estrangeiro. Ali, além das episódicas cenas da série do bairro, a potência narrativa do gênero novela explora com profundidade o mundo político por meio da acomodação de parcelas da sociedade vencida na nova ordem. A referência à literatura, que é o foco principal da série do bairro, não escapa da escrita do autor, ainda que o tema de Um homem: Klaus Klump, para o autor da contracapa, José Mário Silva, seja a força.

 

É assim um dos dias seguintes à ocupação do país:

 

De manhã os tanques parecem objectos particulares, coisas grandes feitas para a higiene das ruas. Limpam as praças, limpam o lixo das praças. Limpam a linguagem das praças e dos cafés, e limpam a linguagem porque quando os tanques passam os homens falam baixo, já reparaste nisso? É Johana que o diz a Klaus.

 

Ou ainda:

 

Klaus nesse dia chegou. Johana recebeu-o com o comportamento assustado e com um beijo. O seu amor estava inacabado porque entretanto havia começado a guerra. A guerra interrompe. Klaus era um homem alto e não apreciava de maneira particular a pátria, cuspia nela se necessário, mas era capaz de morrer pelos seus livros e pelos hábitos.

Amigos de Klaus já haviam sido mortos. Amigos de Klaus já tinham matado ou tentado matar. Klaus, esse, mantinha-se neutro. Ainda não entraram na minha tipografia, dizia Klaus.

 

Epílogo

“Contacto”, “objectos”... A grafia em português de Portugal é uma marca das novas publicações brasileiras de autores contemporâneos – dizem até que José Saramago exige não ser traduzido para o português do Brasil. É o que ocorre com Felipa Melo, autora de Este é meu corpo (a história de uma autópsia), ou Almeida Faria, autor de Lusitânia (uma narrativa cuja trama é formada por cartas trocadas entre as personagens). É o mesmo com o português de Luanda na escrita de José Luandino Vieira – a edição brasileira de Luuanda: Estórias traz até um glossário de expressões em quimbundo ou vocábulos portugueses derivados de línguas africanas, como monandengue (criança) ou sungadimbemgo (mestiço).

 

Voltando à política. A publicação no Brasil de autores contemporâneos editados em Portugal é componente da política cultural e comercial do governo de lá, já que livros de autores como Tavares, Melo ou Luandino são publicados por aqui com o apoio do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas. Que fique a lição.

 

Referências

Gonçalo M. Tavares

O Senhor Kraus. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007.

O Senhor Brecht. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005.

O Senhor Juarroz. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007.

O Senhor Calvino. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007.

Um homem: Klaus Klump. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

 

Felipa Melo. Este é meu corpo. São Paulo: Planeta, 2004.

Almeida Faria. Lusitânia. São Paulo: Difel, 1986.

José Saramago. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

J.W. Goethe. Novela. Tradução e posfácio de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: 7letras, 2004.

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