Terça, 21 Mai 2024

Homenagem I

Antonio Candido, tido como principal crítico literário brasileiro, completa 90 anos na quinta-feira 24. Sua idéia de sistema literário é a formulação da relação social entre autores, obras, mercado editorial, recepção crítica e leitura. A publicação é ela mesma também definidora da contribuição do pensamento crítico ao próprio sistema literário.

 

É o que lemos do repórter Samuel Titan Jr num dos textos em homenagem ao aniversário no Caderno 2 no domingo: “o estilo generoso de tantos ensaios do autor, que parecem menos preocupados em esgotar narcisticamente seus objetos do que plantar marcos de orientação para leitores e críticos futuros; ou conceitos específicos, como o de ’’dialética da malandragem’’, capaz de iluminar um aspecto da vida social brasileira, um romance de Manuel Antonio de Almeida e, de quebra, os dribles de um Garrincha (como há pouco sugeriu José Miguel Wisnik em Veneno Remédio)”.

 

O Caderno ficou muito bonito, com quatro páginas sobre o pensamento de Antonio Candido: a capa nos apresenta a formação do crítico; e as páginas 8, 9 e 10 o seu estatuto, mensagens de colegas, críticos e autores; bibliografia, frases, cronologia; relações intelectuais e a produção jornalística (no próprio Estado, para o qual Candido criou o Suplemento Literário).

 

O sistema literário nacional, ferramenta teórica de Candido que emoldurou o pensamento crítico braileiro, é contemporâneo da independência, cujo exemplo é a literatura romântica. Para Candido, o sistema chega à maturidade com Machado de Assis, primeiro autor brasileiro que percebe seus predecessores; e, posteriormente, com as vanguardas, num típico caso de avôs, pais e filhos.

 

O porto como espaço do exílio

Em algum momento da década de 1970 se consolida um tipo de relato que contribui para a atualização dos sistemas literários latino-americanos: são os romances de testemunho, escritos por  sobreviventes e testemunhas dos crimes das ditaduras, gênero fecundo na Argentina cujo exemplar no Brasil é O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira. Num mesmo movimento avô-pai-filho, há uma obra contemporânea que, na chave da realização estética e literária, traz para a maturidade o relato de testemunho. São os livros do chileno Roberto Bolaño, que reelaboram os testemunhos, transformando-os em depoimentos dados a “detetives selvagens”, poetas em busca de predecessores, de aliados, de adversários intelectuais, muitos exilados em conjunto na Cidade do México, em Paris ou Barcelona.

 

O uso que Bolaño faz da própria experiência é todo voltado para o efeito literário (narrativo ou estético). Realismo, só nos cenários em comum percorridos por autor e personagens. Bolaño faz com a duplicidade do discurso do testemunho e do depoimento (narrativas que pressupõem um ouvinte) o que Jorge Luis Borges fez com, por exemplo,  o conto policial (que pressupõe outro diálogo, o do detetive em busca daverdade), transformando-o em ensaio filosófico.

 

Essa experiência ao quadrado ou duplicadora tem como gatilhos narrativos as viagens das personagens, o que, entre outros livros, ocorre no romance Os detetives selvagens. Em um desses depoimentos, Andrés Ramírez conversa com os poetas do título, Ulises Lima e Arturo Belano, pseudônimo do autor. Ramírez começa assim, numa memória portuária:

 

Saí do Chile num remoto dia de 1975, para ser mais preciso no dia 5 de março às oito da noite, escondido no porão do cargueiro Napoli, isto é, como um clandestino qualquer sem saber qual seria meu destino final.

 

No relato, a personagem conta que a viagem,    ao lhe arrancar do cotidiano, permitiu  também o aparecimento de uma atividade narrativa (de novo, a duplicação): contar a si mesmo sua própria história durante o percurso “sem destino final”, no qual pudesse pensar sobre a vida e refazer a infância. Na passagem a seguir, a angústia da chegada:

 

Certa manhã, entretanto, chegamos ao porto de Lisboa, e minhas reflexões variaram substancialmente de objetos. Meu primeiro impulso, como é lógico, foi desembarcar no primeiro dia, mas, como me explicou um dos marinheiros italianos que de vez em quando alimentava, nas fronteiras portuguesas entre terra e mar o forno não estava para empanadas.

 

E, enfim, a chegada a Barcelona:

 

Quando chegamos a Barcelona, eu já me sentia melhor. Na segunda noite que estávamos atracados, abandonei em segredo o navio e saí caminhando pelo porto como um trabalhador do turno da noite. Ia com a roupa do corpo, mas dez dólares que trazia desde Santiago e que guardava na meia. A vida tem muitos instantes maravilhosos, muito variados além do mais, mas nunca vou me esquecer das Ramblas de Barcelona e suas ruas contíguas que se abriram para mim naquela noite como os braços de uma mina que você nunca tinha visto e que no entanto reconhece como a mina da sua vida!

 

É o espaço portuário sendo usado como ferramenta narrativa na constituição do espaço de muitos territórios da geografia literária.

 

Homenagem II

O mesmo Caderno 2 prestou outra homenagem, desta vez feita a Ricardo Guilherme Dicke, autor mato-grossense morto no dia 09 de julho. Pensei na semana passada em escrever sobre Dicke, de quem apresentei duas obras aqui no Porto Literário. Acabei acreditando que a emoção não me faria escrever melhor sobre o autor do que havia feito há menos de um mês, em Sertões Literários do Brasil. Por isso, conta com a ajuda do texto de Jotabê Medeiros para também homenagear o autor:

 

O mato-grossense Dicke era um mito da literatura nacional que passou a vida numa espécie de ponto cego das estantes. Pouca gente o leu, mas em compensação (se é que isso é uma compensação) muita gente de qualidade o leu: Glauber Rocha, Hilda Hilst (que o comparou a Machado), Luiz Ruffato.

 

No final da década de 70, época dos relatos de testemunho, Glauber Rocha, um autêntico detetive selvagem, tinha um programa na TV, Abertura. Ali, escreve Medeiros, ele teria dito que “Ricardo Guilherme Dicke é o maior escritor vivo do Brasil e ninguém lê, ninguém conhece”.

 

À memória de Ricardo Guilherme Dicke, nome do sistema literário brasileiro mais importante na atualidae.

 

Referências

Samuel Titan Jr. Um mestre digno de admiração. Caderno 2. São Paulo: O Estado de S. Paulo, 20/07/2008, p. D8.

Jotabê Medeiros. Dicke, que não curtia café com gosto de querosene. Caderno 2. São Paulo: O Estado de S. Paulo, 20/07/2008, p. D6.

Roberto Bolaño. Os detetives selvagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 (1ª ed. 1998, Espanha).

 

Antonio Candido em Porto Literário:

         História e literatura na América Latina: Antonio Candido e Ángel Rama, 02/01/2007.

         O método crítico de Antonio Candido através de um olhar mexicano, 09/01/2007.

Roberto Bolano em Porto Literário:

         Cais de letras, 27/03/2007.

         A simetria entre gíria e teoria na obra de Roberto Bolaño, 13/05/2008

Ricardo Guilherme Dicke em Porto Literário:

         Sertões literários do Brasil, 01/07/2008.

         Dois países ficcionais da América Latina, 22/08/06.

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