Terça, 21 Mai 2024

Textos de testemunho como os apresentados nas últimas duas semanas (A tortura no porto santista e O porto lírico de Juarez Bahia) detêm ambivalências. Isto é, tanto os textos factuais (a reportagem, a memória, a História) como os textos inventados (a literatura, a abstração, a mentira) lidam cada um à sua maneira com a diferença que há entre os fatos e a narração em si (este artigo não tratará de revelações, os textos religiosos).

 

I

Se honestos, os textos factuais são claros em não dar conta de toda a verdade. Eles reduzem a diversidade dos fatos simultâneos e sucedâneos do mundo a uma sucessão de episódios reais que tenha sentido (a ação humana no tempo). Esses textos são apreensões do real, mas não sua totalidade. Eles são o que restam, a memória.

 

Ao ler Beatriz Sarlo, aprendi um desses limites: os textos de testemunho sobre torturas sofridas só podem ser escritos pelos sobreviventes. O discurso do testemunho pode ser feito em terceira pessoa (“eu vi tortura”) ou em primeira pessoa  (“eu sofri tortura”); mas quando a tortura dá lugar à morte, os textos factuais não podem dizer “eu morri”. O narrador que está morto é uma ficção e só ali tem sentido (o maior exemplo são as Memórias Póstumas de Brás Cubas). E essa é a contribuição da literatura para o mundo real: dar voz ao “eu morri”, nos aproximar da morte, ou como já escreveu Umberto Eco, nos “preparar” para ela.

 

Numa citação que já fiz uma vez em Ficção e testemunho em "Querô – uma reportagem maldita", a escritora argentina escreveu o seguinte sobre o problema a partir da análise de um texto sobre os campos de concentração:.

 

A verdade do campo de concentração é a morte em massa, sistemática, e dela só falam os que conseguiram escapar a esse destino; o sujeito que fala não escolhe a si mesmo, mas foi escolhido por condições também extratextuais. Os que não foram assassinados não podem falar plenamente do campo de concentração; falam então porque outros morreram, e em seu lugar. Não conheceram a função última do campo, cuja lógica, portanto, não se operou por completo neles. Não há pureza na vítima que tem condições de dizer “fui vítima”. Não há plenitude nesse sujeito.

 

Por causa da defasagem entre totalidade do real e sentido do relato, a experiência de plenitude só pode ser obtida em texto pela ficção (de novo: não se trata das revelações).  Ensina a autora que é ela, a ficção, que permite a realização completa do processo de luto porque sua natureza de invenção dá ao leitor acesso ao fato em sua totalidade.

 

Ao mesmo tempo, a ficção contribui para o entendimento dos fatos ao refleti-los pelos prismas da invenção textual. E não é o caso de menosprezar o testemunho ou os demais textos factuais, até porque acabaram sendo usados como prova judicial nos processos democráticos contra torturadores. 

 

Ao indicar interpretações para si mesmos durante o ato da própria leitura, os textos literários sugerem também formas narrativas para entendermos e interpretarmos o mundo; esse ensinamento ocorre sobretudo pela adesão simpática dos leitores aos personagens (“eu morri e agora conto uma história; e vocês, porque morrerão um dia, vão se permitir ouvir”).  

 

A literatura, é claro, não dissolve todos os problemas colocados, nem pode explicá-los, mas nela um narrador sempre pensa de fora da experiência, como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo.

 

Epílogo

Já que os textos de testemunho quem sabe um dia tenham valor judicial, vale o estímulo à leitura de alguns. No Brasil, o gênero de testemunho tem como maior exemplo O que é isso, companheiro, de Fernando Gabeira. Para quem quiser ir adiante, o Caderno 2 do Estadão deu a dica de um lançamento: Os escritores da guerrilha urbana, sobre a obra de Gabeira e outros três autores, Renato Tapajós, Alfredo Sirkis e Reinaldo Guarani. O autor, Augusto Medeiros da Silva, faz o seguinte de acordo com a descrição da seção de lançamentos:

 

Pesquisador do Centro de Estudos Brasileiros, o cientista social Augusto Medeiros da Silva analisa os limites, os sucessos, os insucessos e os significados político, social e literário das obras desses quatro autores. Ele entrelaça estudos sobre memória, ficção literária e sociologia para examinar os livros e entrevistas concedidas pelo quarteto.

 

Outro livro de memória do período da repressão militar é Navio-presídio – A outra face da Revolução, do jornalista Nelson Gatto, preso no Raul Soares por causa da repressão em Santos. Não sabia de sua existência até semana passada, quando li uma entrevista da jornalista Lídia Maria de Melo a Amanda Guerra, no Unisanta on-line. Mas é um relato difícil de ser encontrado.

 

Capa do livro-testemunho de Nelson Gatto

 

Livro publicado em 1965, Navio-presídio – A outra face da Revolução tem sua edição recolhida e destruída, sobrando poucos exemplares. No Novo Milênio, tem a reprodução de uma reportagem de Carlos Mauri Alexandrino em que o livro é citado: Raul Soares, o navio-prisão. A abertura do livro de Gatto caracteriza bem o relato de testemunho em todas as suas propriedades (gesto de comunicação, dificuldade,  sofrimento, sentimento de explicação e negação da invenção textual). 

 

O depoimento que ora torno público, escrito em papel de embrulho num cárcere imundo de um dos sombrios navios-prisão em que brasileiros foram trancados, tratados como criminosos, é a explicação que dou aos meus amigos. Sem qualquer pretensão literária, é apenas um documento a retratar o Brasil numa época desgraçada.

 

Que os detetives selvagens (a imagem de Roberto Bolaño para os leitores criativos) encontrem algum exemplar do livro de Nelson Gatto e o despache para o Porto Literário.

 

Referências

Beatriz Sarlo. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo e Belo Horizonte: Companhia das Letras e Editora UFMG, 2007.

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