Terça, 21 Mai 2024

Além de guardar os livros, as bibliotecas são elas próprias motivos para histórias: quem nunca ouviu falar sobre o incêndio da Biblioteca de Alexandria, que destruiu entre 400 mil e 1 milhão de livros em 646 depois de Cristo? Jorge Luis Borges, que chegou a ser diretor da Biblioteca Pública Nacional em Buenos Aires, escreveu que as bibliotecas são uma metáfora do universo, imagem concentrada no conto A biblioteca de Babel:

 

A Biblioteca existe ab aeterno. Dessa verdade cujo colorário imediato é a eternidade futura do mundo, nenhuma mente razoável pode duvidar. O homem, o imperfeito bibliotecário, pode ser obra do acaso ou dos demiurgos malévolos; o universo, com seu elegante provimento de prateleiras, de tomos enigmáticos, de infatigáveis escadas para o viajante e de latrinas para o bibliotecário sentado, somente pode ser obra de um deus. Para perceber a distância que há entre o divino e o humano, basta comparar esses rudes símbolos trêmulos que minha falível mão gratuja na capa de um livro, com as letras orgânicas do interior: pontuais, delicadas, negríssimas, inimitavelmente simétricas.

 

Para o escritor e ensaísta Umberto Eco, grande admirador de Borges, biblioteca é sinônimo de repertório: serve tanto para livros, quanto para filmes ou experiências. Sobre a influência de Borges em sua obra, ele fala o seguinte: 

 

Quando, depois, escrevi O nome da rosa é mais que evidente que, ao construir a livraria, pensava em Borges. Se alguém for ler o meu verbete “Código” na Enciclopédia Einaudi, verá que em um dos parágrafos faço uma experiência sobre a Biblioteca de Babel. Ora, aquele verbete foi escrito em 1976, dois anos antes de começar O nome da rosa, sinal de que pela biblioteca borgeana eu já era obcecado há tempos. Enfim, quando começo a escrever o romance, vem-me naturalmente a idéia de biblioteca e com ela a de um bibliotecário cego, que decido chamar de Jorge de Burgos [o próprio Borges ficou cego]. Realmente não me lembro se foi ao decidir chamá-lo assim que fui ver o que acontecia em Burgos, ou se o chamei assim porque já sabia que naquela época em Burgos fora produzido o pergaminho de paño, isto é, o papel em vez do pergaminho. Por vezes as coisas juntam-se muito rapidamente, lendo-se aqui e acolá, e não é possível recordar o que veio antes.

 

Além de demonstrar a presença de Borges em sua própria Biblioteca, Eco também nos mostra que a formação de cada biblioteca é cumulativa e aleatória, sem que nunca saibamos como as idéias e imagens dos livros se refletem um nos outros.

 

As bibliotecas individuais, por sua vez, são conjuntos de livros possuídos por alguém. Além do aspecto da coleção, elas revelam o repertório individual de cada um, formam a ponte entre o universal e o particular. No caso dos escritores, então, elas representam grande parte do que foi lido, antes de transformado em escrita (de volta a Borges: ele se considerava mais um leitor do que um escritor). Os livros de uma biblioteca particular revelam influências mas também métodos de um autor: nela, podemos encontrar livros com anotações, autógrafos, edições raras, traduções, séries organizadas ou guardadas ao acaso, enfim, indícios de uma história da leitura privada.

 

Em Santos, temos duas bibliotecas pessoais que merecem cuidados públicos e pesquisas: a de Roldão Mendes Rosa e de seu poetirmão Narciso de Andrade, ambas sob cuidado das famílias dos autores. Não sei quais são os interesses de seus parentes em relação ao acervo, mas creio, alertado pelo escritor Flávio Viegas Amoreira, que elas mereçam a atenção da sociedade local. Quem sabe o que poderemos descobrir nos livros lidos por Roldão e Narciso?

 

Epílogo

O motivo deste artigo é o destino de uma terceira biblioteca: a de Ranulpho Prata, escritor e médico sergipano que morou em Santos entre 1927 e 1942, ano de sua marte, período em que escreveu o romance de identidade portuária Navios Iluminados, publicado em 1937. Na semana passada, descobri que os mais de 2 mil volumes de seu acervo estão reunidos em Quito, no Centro Brasileiro-Equatoriano de Cultura (IBEC), ligado à Embaixada Brasileira na capital do Equador. Eles chegaram lá por meio de doação de Paulo Carvalho-Neto, sobrinho e afilhado de Prata, que havia dado aulas como professor visitante em universidades dos Estados Unidos em 1974. Foi nesse período, como conta no artigo Um lugar para Ranulpho Prata, que, com o auxílio do Ministério das Relações Exteriores, ele, por falta de condições pessoais de cuidar dos livros, doou o acervo para a formação do Centro de Estudos Brasileiros de Quito.

Resta saber agora que importância teve essa biblioteca santista na história intelectual do país vizinho. E que fique a lição para que cuidemos das demais bibliotecas de nossos escritores.

 

Referências

Jorge Luis Borges. A biblioteca de Babel. In: Ficções. In: Obras completas. Vol. I. São Paulo: Globo, 1998.

 

Umberto Eco. Borges e a minha angústia da influência. In: Sobre literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003.

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