Sexta, 17 Mai 2024

Há alguns meses comentava um ensaio de Theodor Adorno, Sinais de Pontuação. Ali ele cultiva o gosto pela precisão e multiplicidade de sentidos entre os usos do ponto, vírgula, dois pontos e demais sinais. Ele conta que separar uma frase entre vírgulas (, blábláblá,) é diferente de separar a mesma frase entre travessões (– blábláblá –), a separação no segundo caso é mais robusta, é quase um outro discurso.

 

Ao pontuar, esses sinais mais expressam do que significam, são mais emocionais do que razoáveis.

 

Apesar disso é comum, ainda mais na imprensa, considerar que ponto e vírgula, dois pontos e exclamação atrapalhem o entendimento e que vírgula serve para tudo, além de enumerar: serve para pontuar, para dar pausas longas e curtas ou anunciar coisas como fazem os dois pontos. É a famosa economia burra: contar uma história reprimindo a diversidade de expressões da língua escrita definitivamente não é uma boa forma de contar uma história. Tal empobrecimento do repertório expressivo, para mim, é assunto que merece mais discussão do que a reforma ortográfica.

 

 

Nasci na época da reforma anterior, então sou daqueles para quem só houve por toda a vida apenas uma maneira de escrever, mas isso não é motivo para minha geração achar que essa regra é universal e canônica. A ortografia é uma convenção e muitos brasileiros que escrevem devem ter testemunhado duas ou até três reformas ortográficas ao longo do século XX. Apesar de revezes, as reformas simplificam o código, deixam-no mais preciso. Quanto mais precisas as ferramentas da ortografia, mais ricas as expressões.

 

Por exemplo, leremos as próximas edições de livros de José Saramago da mesma forma que estaremos escrevendo e, ao invés de ficarmos notando todos os “óptimos”, "actos”, “acções” e “adopções” (porque o “P” o “C” mudos deixarão de ser escritos em Portugal), poderemos nos perder em suas cadeias de texto em que a ausência de sinais de pontuação nos desafia a descobrir em cada frase lida onde estão as pausas das frases, as ênfases, as dúvidas, as reticências...

 

Mas aceitar a mudança não impede o afeto a determinadas formas de escrita: a constância com que lembramos e brincamos de farmácia com “ph” revela uma nostalgia pela forma antiga cujo dígrafo (o “ph”) remete ao léxico grego, como se o conhecimento “pharmaceuptico” fosse mais requintado que o da botica com a letra F. Então, mesmo passando a usar a nova regra gostaria de prestar homenagem a um sinal do qual muito gosto: o trema. Acatarei a nova proposta de redação, mas a extinção do trema não. Cada “u” pronunciável que até 2012 escrever nas seqüências “gu” e “qu” seguidas de e ou i, cada “u” desse escreverei com trema.

 

A ano de 2012 é o limite de convivência entre a velha e a nova ortografia. Se o afeto ao trema persistir após esse período iniciarei uma revolução, até as últimas conseqüências.

 

Referências

Theodor W. Adorno. Sinais de pontuação. Notas de Literatura I. Tradução e apresentação Jorge de Almeida. São Paulo: Editora 34 e Duas Cidades, 2003.

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