Quinta, 16 Mai 2024

Como um detetive selvagem de Roberto Bolaño, descobri uma pista literária em um guia turístico de Madri (na verdade, uma coleção de anúncios disfarçada de guia turístico). Eram informações sobre o bairro das letras da capital espanhola, nada que não possa ser encontrado na internet. O site Alba City, por exemplo, conta que o bairro tem um nome, Huertas, e é delimitado pelas ruas Atocha, de La Cruz, Plaza de Jacinto Benavente, Plaza de Canalejas, Carrera de Sán Antonio, Plaza de las Cortes, Plaza de Canóvas del Castillo e Paseo del Prado.

 

I

Mas tinha acabado de sair do Metrô, perto da Plaza Mayor, na Madrid Antiga, no segundo de três dias na cidade, e o texto do guia barato que havia pegado no hotel parecia não ter sido feito para turistas: estava lá a informação de ouro para o colunista, que frases de escritores que ali moraram foram escritas no chão da rua, mas nenhum mapa e ou indicação de onde foram escritas. Entre eles o maior da literatura espanhola, Miguel de Cervantes.

 

O tal guia, MadridTour (www.madridtour.info, um site hoje fora do ar) cita apenas uma rua, a Calle del Leon, que no século XVII costumava ser visitada por atores e atrizes e que não constava de três mapas que consultei saindo da Plaza Mayor. No quarto mapa, uma ampliação da Madri Antiga de outro guia, encontrei a tal Calle del Leon e segui pelas ruas tortas e inclinadas daquela região até ali. Rua percorrida de cabo a rabo e nada de encontrar qualquer frase, até que, perto dali, frustrado e dando uma olhada em bugigangas para turistas na Calle de las Huertas, piso numa frase de Don Juan, o libertino personagem ficcionalizado por muitos autores, destacada da peça Don Juan Tenorio, de José Zorrilla (1817-1893):

 

Ah! Não é verdade, anjo do amor, que neste afastado rincão mais pura a lua brilha e melhor se respira? 

 

Daí foi fácil, perguntei a um vendedor de artesanato se a rua se iniciava para cima ou para baixo e fui colecionando em fotografias os trechos a seguir:

 

 

Francisco de Quevedo (1580-1645), autor do Século de Ouro espanhol, autor de poesia, sátiras morais e crítica literária, além de obras políticas, filosóficas e sobre o pensamento religioso.

 

Além de Dom Quixote (1605-primeira parte, 1615-segunda parte), que garante o título de Século de Ouro para este momento da literatura espanhola, Miguel de Cervantes (1547-1616) escreveu também Novelas Exemplares (1613) e obras para teatro. A frase cunhada na rua é o celebrado início do, considerado por alguns, maior romance de todos os tempos: “Em algum lugar de La Mancha...”.

 

José Echegaray y Eizaguirre (1832-1916) venceu o Prêmio Nobel de Literatura de 1904. Além de dramaturgo, foi engenheiro civil e matemático.

 

Poeta, José Zorrilla (1817-1893) produziu nos gêneros da lírica, da épica e da dramaturgia.

 

Gustavo Adolfo Bécquer (1836-1870), poeta e escritor romântico.

 

Outro responsável pelo Século de Ouro, Luis de Góngora y Argote (1561-1627), foi autor de romances e poesia. Além dos versos, satirizava escritores como Quevedo e Lope de la Vega.

 

Benito Pérez Galdós (1843-1920), formado em direito, dedicou sua vida a descrever de forma realista típica do século XIX a sociedade espanhola.

 

Outro Nobel espanhol (1922), Jacinto Benavente (1866-1954) foi dramaturgo e crítico literário.

 

II

Os escritores acima se encontram em dois períodos da história: o Século de Ouro espanhol e a virada do século XIX para o século XX. A exceção é Bécquer, que viveu inteiramente no século XIX. Será que nenhum escritor espanhol morou nas ruas da Madri Antiga entre o final do século XVII até o início do século XIX? Talvez seja porque é no final do século XIX que a atual conformação da cidade começa a tomar forma, logo após a independência da França e com a criação de museus (o Prado é de 1819), teatros, edifícios, hospitais, hipódromos etc. Seria mais interessante para a construção da identidade literária da cidade esta ligação direta entre os dois momentos históricos? Mas isto já está fora da minha alçada.

 

O que interessa é que no porto de Santos, cidade cosmopolita, porta de entrada do Brasil para as coisas do mundo, a reforma dos armazéns portuários, já aprovada e tudo, poderia contar com algumas inscrições de poetas que cantaram a cidade. Nem vou dizer dos locais, que santo de casa não faz milagre, mas não dá para deixar de imaginar impressos no chão do cais os versos de Pablo Neruda, Elizabeth Bishop e Blaise Cendrars descrevendo o momento em que chegaram ao nosso porto (ver Três poemas chegam no Porto de Santos).

 

Epílogo

Falando em detetives selvagens, no domingo à noite, na revistaria da rodoviária de Madri para tomar o ônibus de volta a Salamanca, não é que encontro 2666, o romance testamento de Roberto Bolaño (1953-2003), ainda inédito em português? São mais de mil páginas da deliciosa prosa do autor chileno que faz de poetas, escritores e críticos (os tais detetives selvagens) personagens fantásticos para o entendimento de uma série de questões de atuais da América Latina: as cicatrizes dos golpes e ditaduras, a imigração ilegal, o conflito entre herança cultural e vanguarda e a literatura tornada ela mesma tema literário.

 

Referência

Roberto Bolaño. 2666. Anagrama: Barcelona, Espanha, 2009 (1ª edição 2004).
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