Quinta, 16 Mai 2024

Já defendi bastante neste espaço a ficção como forma de conhecimento do mundo, isto é, a própria natureza da invenção literária permite ao autor criar pontos de vista (do narrador ou dos personagens) sobre determinado tema que o jornalismo ou as ciências sociais não podem alcançar.

 

Mas a literatura só contribui para o conhecimento sobre a sociedade na medida em que o equilíbrio e correspondência entre forma e conteúdo, seu principal atributo, seja sempre o motivo de sua realização. Quando a ficção é feita simplesmente para informar algo, sem uma arquitetura formal adequada, acabamos no simples entretenimento ou passatempo, enquanto a complexidade da obra de arte se esvai amarradas por um fio condutor “informativo”.

 

I

Tudo isso é para dizer que um grande tema do porto de Santos, o desembarque de clandestinos, acabou recebendo de uma obra de ficção um tratamento mais informativo que literário. É o caso de Clandestino, romance publicado em 2009 de Marco Antonio Scandiuzzi, escrivão da Polícia Federal que atuou em Santos no Núcleo de Polícia de Imigração.

 

O livro é narrado por Malanda Bujudo, filho de um ditador africano que, após revolucionários tomarem o poder, viaja como clandestino em um navio que, depois de uma promessa de Europa, acaba mesmo em Santos.

 

Apesar da escolha da narração em primeira pessoa, a narrativa não alcança a dramaticidade que esta escolha poderia trazer ao relato. Fiquemos com uma passagem do capítulo A Viagem, em que, depois de vários dias no porão, os clandestinos ainda aguardam a chegada em algum porto:

 

Passamos a noite quase em silencia e o dia seguinte foi igual aos anteriores. Corpo molhado até a altura da cintura, fome e a sede que se tornava naquele instante insuportável. O barulho continuava enorme, mas não era o que mais incomodava. Engraçado como o nosso corpo elege prioridades. Primeiro os ouvidos reclamaram, depois os pés de tanto ficarmos em pé, porém com a ausência de comida o estômago os suplantou nas reclamações. Por fim a sede se apoderou de nossos sentimentos. Já sabia que o maior problema em catástrofes era a falta de água no organismo e naquele momento eu sentia os efeitos reais de tal ausência.

O dia transcorreu como os anteriores...

 

O texto nos informa de tudo: o desconforto da viagem, a fome, o cansaço e a sede. O personagem nos diz que começava a sentir os “efeitos reais” da ausência de água, mas se apresenta como se estivesse racionalizando dentro do porão (“já sabia que o maior problema...”). Dois parágrafos à frente, ele explica os efeitos no organismo da ingestão de água do mar.

 

No capítulo seguinte, Não é o Fim, a ânsia informativa outra vez se superpõe às necessidades narrativas. O navio já está atracado e Bujudo e um colega de viagem se sentam sobre o leme com o objetivo de serem vistos por alguém até que passa uma lancha com a inscrição Santos Pilot:

 

Sou amante do futebol e assistia aos jogos do time da cidade de Verland, na Inglaterra. Por lá o maior ídolo era Bob Chalton, um jogador do passado e que era muito reverenciado. Mas quem gosta de futebol e conhece a sua história, sabe que o maior de todos os tempos havia sido e era Pelé. Ele era de Santos e por isso eu conhecia aquele nome na lancha. Estava eu na cidade do rei do futebol e do time que havia encantado o mundo. Talvez a minha sorte estivesse mudando e as coisas começassem a mudar.

 

Talvez seja implicância, mas comparemos com duas passagens similares de outras obras de ficção sobre o porto de Santos. Uma sobre viagem clandestina e outra sobre Pelé como fator identificador da cidade.

  

De repente o mar zangou-se, piorando a situação. O vapor começou a jogar, as ondas quebrando-se de encontro ao casco com ruído de desmoronamento. Ventava rijo e as águas engrossavam sob o açoite da chuva. No porão meio vazio principiou a dança dos volumes que se arremessavam uns contra os outros, rangendo, chiando, atritando-se furiosamente. Pepe olhava-os, receoso de ser esmagado. Não sabia como se defender nem ao companheiro. Para o lado que se lançava, sentia os caixões em movimento, deslizando como coisa viva. O balanço era cada vez mais forte, parecendo que o vapor corcoveava, numa guinada mais violenta, um pequeno volume desprendeu-se de uma pilha de fardos e rolou sobre ele, esmagando-lhe os dedos da mão esquerda. Pepe saltou um rugido e uma praga violenta.

 

Enquanto fora durou o temporal, lá dentro os clandestinos sofreram até não poder mais. Foram horas infernais, inesquecíveis, as máquinas arfando, o mar a bater no costado com o lençol duro nas ondas e os volumes, que no negrume semelhavam monstros, querendo devorá-los.

 

Ainda que em terceira pessoa, discurso mais afeito a descrições mais objetivas, a carga dramática da viagem clandestina é elevada. E isso ocorre pelas escolhas formais do autor: “de repente o mar zangou-se”, “ruído de desmoronamento”, “dança de volumes”, “açoite da chuva”, “horas infernais”, “monstros querendo devorá-los”. A passagem acima é de Navios Iluminados (1937), romance de Ranulpho Prata sobre um migrante do sertão baiano que acaba como estivador no cais de Santos.

 

 outra passagem é a seguinte:

 

Santos: É no Brasil, e já faz quatro vezes dez anos.

Alguém ao meu lado conversa “Pelé é um super-homem”,...

 

Estes são os versos iniciais de Santos Revisitado, de Pablo Neruda, publicado em A Barcarola. Está certo que o cara é vencedor de Prêmio Nobel de literatura, mas as referências não podem ser baixas: “Pelé é um super-homem” une força e expressividade de uma metáfora acertada. Já “Mas quem gosta de futebol e conhece a sua história, sabe que o maior de todos os tempos havia sido e era Pelé”, ainda que esteja correto, não parece nada com o que sairia da boca de um clandestino, ainda mais o triunfal “havia sido e era”, tão parecido com um santista falando sobre Santos. A ideia está ali, o reconhecimento do nome do jogador como uma esperança renovada, mas a execução preferiu informar a narrar. Clandestino voltará a Porto Literário em outras oportunidades, também para falar de acertos como a escolha do tema.

 

Referências

Marco Antonio Scandiuzzi. Clandestino. Santos: Edição do Autor, 2009.

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