Quinta, 16 Mai 2024

Com um exemplo sobre um tema comum aos portos, a chegada de clandestinos, escrevi semana passada sobre como a literatura, instrumentalizada com o objetivo de informar, perde a relação adequada entre forma e conteúdo e por causa mesmo disso termina por perder também seu valor como conhecimento concreto do mundo.

 

Tenho em mãos para escrever este artigo Pelas curvas das estradas de Santos, (Realejo, 2006), de Sergio Willians, apaixonado por história regional. O autor é jornalista com passagem por redações (Diário Popular, TV Tribuna, TV Record Litoral (antiga TV Mar), assessoria de imprensa e preparo de textos institucionais de turismo. Mas o artigo de hoje é sobre o que Umberto Eco chama de paratexto da obra, isto é, todos os textos que estão no livro mas não fazem parte da história (orelhas, prefácios, notas...). Olha só o que o autor da orelha escreveu:

 

 Seu primeiro trabalho literário, fruto de mais de dois anos de estudos profundos sobre o que ele considera os caminhos terrestres mais importantes da América Latina. Neste trabalho optou por mesclar o conceito jornalístico, baseado em fatos reais, com o de ficção. Defende a difusão da história através de textos leves e divertidos, que permitem ao leitor um aprendizado sem compromisso, apenas por lazer.

 

O livro nos mostra claramente que Sergio Willians tem um grande talento para a reconstituição, e creio que o livro terá grande utilidade como objeto de pesquisa também pelo momento em que foi escrito, no qual obras não-literárias – ainda que ficcionais – conquistam leitores atrás de teorias da conspiração ou da admissão de seu próprio “sem compromisso, apenas por lazer”.

 

Não importam os méritos do livro (que lá os tem!), a própria orelha os desconsidera, rejeitando de antemão a curtição estética como valor, como se pensar, criar ou abstrair não pudesse ser divertido ou prazeroso. Há vários caminhos didáticos, por certo, mas facilitar creio que deve ser a última opção após tantas coisas: simplificar, que é muito diferente de facilitar, adaptar para outro meio ou gênero, transformar ou transcriar...

 

Mas o autor dos paratextos não quer enganar ninguém. Além da orelha, o livro nos oferece um paratexto incomum nos livros, veja só, uma advertência que admite a contribuição do livro para o preconceito contra o pensamento e conhecimento:

 

Essa obra não tem proposta acadêmica nem intenção de servir como referência para estudos e pesquisas sobre o assunto. O autor foi fiel aos registros históricos conhecidos, porém, como em toda obra de ficção, criou grande parte dos diálogos e alguns fatos. PELAS CURVAS DAS ESTRADAS DE SANTOS é uma obra literária de entretenimento.

 

Mas creio que o autor deste filme autoqueimante se engana: por abrir mão justamente de sua pretensão artística é que o livro se valoriza como documento. Um elemento no mínimo interessante para os historiadores do futuro escreverem a história intelectual no Brasil sob as leis de incentivo cultural e a utopia anti-intelectual expressada em textos que dentro mesmo do objeto de veiculação da obra literária (o próprio livro) proponham que a literatura almeje não “servir de referência”. Parece que a advertência foi escrita por quem não gosta de literatura.

 

 

Não parece estranho que na página ao lado da advertência, logo depois, a proposta é referendada, talvez sem intenção, por um monte de gente? Carimbam seus logotipos no livro o Ministério da Cultura, a Usiminas (“sempre presente e atuante”) e a Cosipa (Empresa do Sistema Usiminas) como patrocinadores, a Fundação Arquivo e Memória de Santos como apoio cultural e a Realejo, livros e edições. (Vale outro aviso: não sou contra leis de incentivo, estou aqui contra usar ficção como ferramenta).

 

Mas Sergio Willians comunga das ideias do autor da orelha e da advertência. No primeiro parágrafo de sua introdução, ele confessa que algo o afligia em ser “fiel aos documentos e escritos sobre o assunto, colocando referências de pesquisa, e tudo o que um bom livro de História agrega como forma de prover o leitor do máximo de informações sobre o tema”.

 

A essa preocupação ele acrescenta um perigo:

 

Também (ser fiel e colocar referências) deixarias o trabalho com uma característica muita próxima do estilo acadêmico, normalmente ortodoxo e carregado de termos sisudos, além de passagens ásperas e truncado. Essas obras têm sua importância, isso não se discute, mas não possuem a proposta de entreter o grande público, que merece e necessita de meio divertidos para conhecer o íntimo de nossa história. E esse é meu intento.

 

Em nenhum momento o autor nos chama a atenção para o caráter épico dos personagens da empreitada que em abril de 1908 realizou a primeira viagem de automóvel através da Serra do Mar, entre São Paulo e Santos. Willians nada nos indica sobre as opções de escrita que teve que arbitrar para dar voz própria aos seus personagens e nem toca em seus problemas ao transformar um relato jornalístico em fictício, enfim, nada que trave um diálogo sobre o fazer literário. Nem sabemos se o autor gosta de livros de aventura ou se é fã de automobilismo. Se tem romancistas históricos preferidos ou se buscou criar algo novo neste gênero desgastado.

 

E agora, já no penúltimo parágrafo, uma grande contradição. Não é que ele mede o sucesso do livro não pela ferramenta ficcional que facilita a história para o leitor, como tanto defende, mas justamente pela qualidade de sua pesquisa? Olha só:

 

A aventura, registrada nos anais da história do automóvel, jamais foi abordada com tantos detalhes como em PELAS CURVAS DAS ESTRADAS DE SANTOS.

 

Logo a primeira parte do livro, Uma cidade em ebulição, praticamente desmente toda a intenção de fazer ficção para apresentar um panorama histórico da cidade de São Paulo. São 14 páginas de informações históricas sobre a capital do Estado, sua dinâmica de crescimento, a industrialização, sua ligação física ferroviária com os centros produtores do interior e o porto de Santos, seu sistema de transporte público, crescimento demográfico, a formação de bairros de trabalhadores, vida cultural, a influência intelectual francesa e a presença britânica na gerência dos empreendimentos de infra-estrutura da virada do século XIX para o XX...

 

O livro começa assim:

 

Uma cidade em ebulição

 

São Paulo, 1908

A capital paulista era uma cidade em ebulição. Desde a proclamação da República, em 1889, quando o Brasil deixou de ser conduzido pelo regime monárquico, São Paulo não parou mais de crescer. Sua população, de pouco mais de 60.000 pessoas em 1890, pulou para cerca de 370.000 em 1908, avançando de uma modesta 11ª colocação entre as cidades mais populosas do país, atrás de localidades como Recife, Salvador e até Teresina, para a segunda colocação nacional, suplantada naquele ano apenas pela capital federal, o Rio de Janeiro.  

 

Tudo bem escrito e apresentado, parecendo muito correto, mas não tem personagem, drama, situação inicial a ser alterada para que a história aconteça. No lugar disso, temos três datas, dois números de população, comparações com outras capitais, diferenças entre Império e República. E esse é só o primeiro parágrafo de, repito, 14 páginas sem diversão ou lazer como prometidos na orelha, na advertência e no primeiro parágrafo da introdução do autor.

 

Após esse intervalo, com um subtítulo o protagonista finalmente é apresentado: “Prado Junior, um aventureiro paulista”. Mas o relato informativo (os dados biográficos da figura histórica) adia outra vez a ação dos personagens e o desenvolvimento da narrativa ficcional. É só na página seguinte que ouvimos a voz do protagonista conversando com Santos Dumont sobre um vôo de balão.

 

– Alberto, estou ansioso para voar nesse negócio – disse, esfregando as mãos, como num tique nervoso.  

 

A resposta do inventor é uma informação, o que em si não é nada de mais, mas depois de tudo de antes, acaba por reforçar a ideia de adiamento da ação:

 

– É seguro, posso lhe garantir, já fiz várias experiências com ele. Não há o menor risco.  

 

O pequeno diálogo entre Prado e Eglantina, sua esposa, que demonstrava receio, parece que foi feito como justificativa para mais informação, não para narrativa. E lemos mais um parágrafo da pesquisa do autor: “Não havia razão para o receio de Eglantina”, “a partir de 1897”, “já havia pilotado dezenas deles”, “nove equipamentos montados”, “registrado”. O parágrafo chega ao fim informando o nome do novo balão, “Lutèce”, e eles entram nele.

 

E só aí, após uma linha de espaço – ufa! –, que começa a ação: o balão sobe. Só o fato de haver esse espaço indica que o autor intuiu sobre a desnecessidade de tudo que veio antes. Todo o relato anterior (as 14 páginas) poderia servir como paratexto (um prefácio histórico, provavelmente) e não narrativa. O parágrafo abaixo, que no livro começa logo após a tal pausa, não seria uma bela abertura? Não teria mais eficiência como um convite à leitura e a um mergulho pela história?

 

O “Lutèce” alçou vôo fácil, com quatro pessoas a bordo. Além de Santos Dumont, Prado Júnior e Eglantina, o cesto abrigou também Edgar Prado, primo do jovem paulistano. Assim que ganharam os céus de Paris talvez eles não soubessem, mas Eglantina Prado estava se tornando, naquele momento, a primeira mulher da história da humanidade a voar num balão.

 

Está tudo aí: o balão, que introduz ao leitor o espírito aventureiro do protagonista; os personagens e a presença de um nome bem conhecido, Santos Dumont, o que valeria também por uma apresentação da obra como romance histórico; o interesse internacional, Paris; a expressão “jovem paulistano”, que localizado na capital francesa, informa sobre a pujança econômica do Estado. O “talvez eles não soubessem” e o delicioso detalhe do primeiro vôo de uma mulher, juntos, garantem um tom de fábula, de entrada no terreno da ficção, um eficiente “era uma vez...”, mas ali quase no pé da página 15, torna-se completamente desvalorizada.

 

Outro indício da aversão ao pensamento intelectual é a ausência de índice no livro. O livro tem uma estrutura de capítulos alternados: um conta a história ficcionalizada de Prado Junior, outro narra episódio histórico ou fase da ligação física entre planalto e litoral (exemplo, o 7 de setembro no Ipiranga, vindo de Santos, após a subida da Serra).

 

Sem índice o leitor que queira acompanhar a ficção sem interrupções deverá que folhear até chegar à continuação. Nada impossível, é certo, mas o lazer sem compromisso acaba prejudicado porque o leitor terá que trabalhar atrás do reinício da ficção.

 

Sem índice, também só descobrimos folheando um capítulo sobre curiosidades do assunto, O que ficou de fora, e uma seção de imagens, com reproduções de fotografias, pinturas, anúncios, mapas e postais.

 

Conclusão

Minha hipótese é simples: a necessidade de parecer leve para o leitor, para o Ministério ou para os departamentos de marketing das empresas financiadoras mais atrapalha do que ajudar na concepção do livro. Já usei esses exemplos várias vezes, mas é ótimo para iluminar o preconceito alimentado no livro: ler qualquer romance ou texto crítico de Umberto Eco é sempre uma oportunidade de se divertir, com exemplos e situações inusitados em meio a um conhecimento erudito, as mais de mil páginas de O homem sem qualidades, de Robert Musil, são movidas por ironia e sarcasmo. Os títulos dos mais de cem capítulos, lidos um após outro, no índice, são uma atração à parte (exemplo: “Um capítulo que pode ser omitido pelos que não tiverem opinião favorável sobre a atividade de pensar”). E é uma das obras mais fortes sobre a sociedade européia entre a primeira e a segunda guerra.

 

Essa indecisão, aqui demonstrada nas contradições entre paratexto e também na opção narrativa do autor na construção do primeiro capítulo ou parte do livro (não sabemos, não há índice), também prejudica o leitor interessado em saber mais do assunto, já que não há ali qualquer referência sobre os arquivos pesquisados e livros lidos. O livro não informa nem a data de publicação da matéria que serviu de base para o relato nem o nome do jornal que a publicou.

 

Parece que o autor e a edição tomaram por certo que todos os leitores do livro são aqueles que não querem compromisso, que nenhum aluno de ensino fundamental ou colegial iria se apaixonar pelo assunto e cultivar o interesse de ler a matéria original ou fazer um trabalho para a escola. Reina a ideologia de professor de cursinho, tudo deve ser divertido, ainda que não seja.

 

Ao não oferecer referências, o livro não só fortalece o anti-intelectualismo, como efetivamente impede que o conhecimento circule. O queijo e os vermes, do historiador Carlo Ginzburg, na pesquisa, e Memórias de Adriano, da ficcionista Marguerite Yourcenar, na invenção baseada em fatos reais, são dois exemplos de livros em que os autores criaram uma forma inovadora de dividir suas referências com os leitores, como se fosse um diálogo, até uma advertência que convida ao conhecimento, ao contrário de algumas intenções expostas no livro de Willians.

 

Tanto no caso de semana passada como no de hoje, a intenção é procurar um sintoma dos perigos que rondam a literatura, como o anti-intelectualismo ou sua instrumentalização.  Se algo for motivo de polêmica, tudo bem, mas o objetivo de Porto Literário é seguir a tradição moderna de perceber a criação ficcional como integrante do campo autônomo da arte, cuja contribuição à comunidade tem valor por si mesmo, como realização dos sentidos e do intelecto. Apesar da utilidade documental e até mesmo didática destas obras, a literatura não passou de meio – um registro para o delegado ou um projeto didático de entretenimento para o jornalista – e não parece que tenha sido concebida nesses livros como realização artística.

 

A relação entre história e literatura, que é o combustível desta coluna há quatro anos, não se esgota na comprovação ou não dos fatos que foram transportados para a ficção, que basicamente está na feitura das duas obras. Não é sua fidelidade à realidade, mas sim sua capacidade de provocar o que o próprio Carlo Ginzburg trata de enargeia, palavra grega que significa “eficácia expressiva”, na definição de Plutarco, ou simplesmente vivacidade. A partir daí que se cria o diálogo entre o registro e a ficção (ver Uma aula sobre as relações entre verdade e ficção).

  

Referências

Sergio Willians. Pelas curvas das estradas de Santos. Santos: Realejo, 2008.

 

Umberto Eco. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

 

Robert Musil. O homem sem qualidades. Tradução de Lya Luft e Carlos Abbenseth. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

 

Carlo Ginzburg. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Companhia das Letras, 1987 (1ª edição italiana, 1976).

 

Carlo Ginzburg. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

 

Marguerite Yourcenar. Memórias de Adriano. Seguido do Caderno de Notas das “Memórias de Adriano” e da Nota. Tradução de Martha Calderaro. Coleção Grandes Romances. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980 (1ª Ed 1951). 
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