Quinta, 16 Mai 2024

Escrevi aqui já algumas vezes sobre Roberto Bolaño. Tenho dito aos amigos que me apaixonei pela escrita do autor chileno. Isso transparece neste espaço, mesmo que a coluna não seja especialista em crítica, mas dedicada à busca dos temas históricos contidos na elaboração ficcional. O caso de hoje tenta reconstituir o desenvolvimento da imagem de “detetives selvagens”, do título de sua obra-prima, de 1998.

 

O título Os detetives selvagens se refere a Arturo Belano, alter ego do autor e Ulises Lima, dois dos protagonistas deste romance no qual três escritores e uma prostituta partem da capital mexicana para os desertos de Sonora em busca do paradeiro de uma autora de vanguarda das décadas de 20 e 30 do século XX. O detetive selvagem é o escritor em busca da expressão no mundo da hiperrealidade e da transmodernidade, mas creio que a imagem valha para todo artista.

 

A narrativa de seu primeiro romance, Pista de gelo (1993), publicado no Brasil em 2007, é formada pelo testemunho intercalado de três personagens sobre um assassinato em uma pita de gelo, mas não sabemos se é a uma autoridade policial ou a um jornalista interessado pelo assunto. Existe o depoimento, mas não há ainda a figura do detetive.

 

Em 2000, com a publicação de Tres, sabemos que a imagem do detetive selvagem, caso Bolaño não tenha mentido, começa a ser trabalhada em 1994, ano em que ele data Un paseo por la literatura, a terceira de três prosas poéticas reunidas no livro. A estrutura narrativa do texto é a de uma seqüência numerada de episódios ou pensamentos que envolvem o surgimento de uma série de autores, caracterizando bem a busca de Ulises Lima e Arturo Belano, o alter ego de Bolaño. O clima da empreitada dos dois poetas aparece logo no segundo fragmento deste “passeio pela literatura”:

 

Ao ponto ficamos, pai, nem cozidos nem crus, perdido na grandeza deste lixão interminável, errando e nos equivocando, matando e pedindo perdão, maníacos depressivos em teu sonho, pai, teu sonho que não tinha limites e que desentranhamos mi vezes e outras mil vezes mais, como detetives latinoamericanos perdidos em um labirinto de cristal e barro, viajando sobre a chuva, vendo filmes em que apareciam velhos que gritavam, tornado!, tornado!, olhando as coisas pela última vez, mas sem vê-las, como espectros, como sapos no fundo de um poço, pai, perdidos na miséria de teu sonho utópico, perdidos na diversidade de tuas vozes e de teus abismos, maníacos depressivos na inabarcável sala do Inferno onde se conzinha teu Humor.

 

Os leitores de Bolaño provavelmente tiveram contato com a imagem pela primeira vez em 1996, com a publicação de La Literatura nazi en América (perfis fictícios) e Estrella distante (romance). Um dos perfilados do primeiro, Carlos Ramírez Hoffman, o infame, daria origem a Carlos Wieder, personagem poeta e assassino, dilacera poetisas de esquerda durante a ditadura de Pinochet. Nas duas histórias, anos após a democratização, um detetive surge para vingar as mortes causadas pelo personagem que conduz a trama.

 

O processo de reutilização de elementos é alertado pelo próprio autor na nota que introduz a ação de Estrella distante

 

No último capítulo de meu romance La literatura nazi en América era narrado talvez muito esquematicamente (não passava de vinte páginas) a história do tenente Ramírez Hoffman, de FACH [força área do Chile]. Esta história me contou meu compatriota Arturo B, veterano das guerras floridas e suicida na África, que não ficou satisfeito com o resultado final. O último capítulo de La literatura nazi en América servia como contraponto, acaso ou anticlímax do grotesco literário que o precedia, e Arturo desejava uma história mais comprida, não espelho e explosão de outras histórias, mas espelho e explosão de si mesma. Assim pois nos encerramos durante um mês em minha casa em Blanes e com o último capítulo em mãos e ao ditado de seus sonhos e pesadelos compusemos o romance que o leitor tem agora diante de si. Minha função se reduziu a preparar bebidas, consultor alguns livros e discutir, com ele e com o fantasma cada dia mais vivo de Pierre Menard, a validez de muitos parágrafos repetidos.

 

A própria nota, ainda que trate da realização do romance, é ela mesma um procedimento literário, já que a ideia da adaptação é de Arturo B, o Belano de Os detetives selvagens, que, diz a nota, não havia gostado muito do capítulo dos perfis fictícios. É neste comentário muito borgeano que surge para o leitor de Bolaño uma das figuras chaves que sedimenta a figura dos detetives selvagens. Antes do romance de 1998, Belano apareceria ainda em alguns contos de Llamadas telefônicas (1997) e, posteriormente, em um dos contos de Putas assassinas (2001) ou na novela Amuleto (1999).

 

Na nota fica clara também a filiação de Bolaño a Jorge Luis Borges, criador do personagem Pierre Menard, aquele que pretende reescrever o Dom Quixote. Além da reescrita, outro procedimento literário borgeano bastante presente na obra de Bolaño é o gosto pela enumeração, comum em muitas passagens de Bolaño ou na própria organização de La literatura nazi en América.

 

Ainda que o fragmento de Un paseo por la literatura indique claramente os rumos da obra em que Ulises Lima e Belano são protagonistas, a ideia aparece em 1994 na forma de “detetives latinoamericanos”. É no perfil e no romance de 1996 que um detetive de fato que entra na trama, mas ainda é um detetive convencional dos romances e contos policiais, que tanto agradavam também a Borges.

 

A transformação final viria dois anos mais tarde, em 1998, quando a imagem do detetive selvagem deixa a investigação policial e se solidifica na imagem do escritor em busca, uma metáfora para a realização literária. E os percursos de Lima e Belano pelas ruas do Distrito Federal do México são narrados em Os detetives selvagens de duas formas distintas, ambas criando distância entre o leitor e os personagens. Na primeira e na terceira partes do livro, sabemos das peripécias dos dois e de todo um grupo de poetas por meio do diário de García Madero, jovem erudito de 17 anos que é convidado pelos dois a integrar o grupo dos real-visceralistas. Já na segunda parte Bolaño retoma a narrativa em forma de dezenas de depoimentos sobre os dois poetas, como realizado em A pista de gelo, fazendo assim de Os detetives selvagens um ponto de fuga de toda sua realização.

 

O desenvolvimento da ideia continua até 2666, obra póstuma, romance lançado em 2004, um ano após a morte do autor nascido em 1953. Neste caso, os detetives selvagens são quatro críticos literários especializados no autor alemão Beno von Archimboldi, um recluso escritor de quem ninguém conhece o paradeiro. Seguindo uma pista, três deles se dirigem para Santa Teresa, no norte do México, assim como Sonora em Os detetives selvagens. Lá eles encontram notícias de mulheres assassinadas com os requintes de Ramiro Hoffman... E mais uma volta – no caso, a última – da espiral ficcional de Roberto Bolaño.

 

Epílogo

Mas para que serve saber o desenvolvimento da ideia dos detetives selvagens? Creio que não é necessário conhecer todo esse caminho para se apreciar qualquer um dos livros acima. O que fica deste itinerário errado e equivocado é a simples constatação de que o engenho literário, e artístico em geral, representa a capacidade de realização humana. Sua obra é construída um passo atrás do outro, dando forma a universos ficcionais por meio dos quais Bolaño, assim como Borges ou quem seja, contribui para a representação do mundo.

 

Uma observação final: a coluna não teve acesso ao primeiro romance de Bolaño, Consejos de um discípulo de Morrison a um fanático de Joyce, de 1984, escrita a quatro mãos com A.G. Porta, além dos romances La senda dos elefantes (1994) e Monsieur Pain (1999), sem contar os poemas de Los perros románticos (2000) ou os contos de El gaucho insufrible (2003), no qual uma das histórias traz um escritor argentino atrás de um misterioso cineasta na França. A obra de 1994 pode trazer alguma referência ao caso, mas o ano é o mesmo do relato de Tres, então não haveria prejuízo da interpretação dada aqui. Os demais foram publicados após Os detetives selvagens, quando a ideia já havia sido sedimentada. Lógico, que assim que tiver acesso a estas obras ainda não traduzidas ao português, como um detetive selvagem irei procurar novos indícios desta ideia.

 

Roberto Bolaño em Porto Literário

Escritores de mentirinha, história de verdade, sobre La literatura nazi en América, 04/08/2009

A invasão da Faculdade de Filosofia e Letras, sobre Amuleto, 28/04/2009

História e literatura em Bolaño, sobre Noturno do Chile, 17/03/2009

Ficção e biografia em Bolaño, 03/03/2007

A simetria entre gíria e teoria na obra de Roberto Bolaño, sobre Os detetives selvagens, 13/05/2008

Cais de letras, sobre Noturno do Chile, 27/03/2007

  

Referências:

Roberto Bolaño

A pista de gelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 (1ª ed. 1993).

Tres. Barcelona, Espanha: Acantilado, 2000.

La literatura nazi en América. Barcelona, Espanha: Seix Barral, 2008 (1ª ed. 1996).

Estrella distante. Barcelona: Anagrama, 2009 (1ª ed. 1996).

Os detetives selvagens. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 (1ª ed. 1998).

Llamadas telefónicas. Barcelona, Espanha: Anagrama, 2007 (1ª ed. 1997).

Amuleto. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 (1ª ed. 1999).

Putas assassinas. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 (1ª ed. 2001).

2666. Barcelona, Espanha: Anagrama, 2009 (1ª ed. 2004)

 

Jorge Luis Borges. Pierre Menard, autor do Quixote (1ª ed. 1944). Tradução de Carlos Nejar. In: Ficções. In: Obras Completas I. São Paulo: Globo, 1998.

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