Quinta, 16 Mai 2024

Varandas da Eva: o nome do lugar.

Não era longe do porto, mas naquela época a noção de distância era outra. O tempo era mais longo, demorado, ninguém falava em desperdiçar horas ou minutos. Desprezávamos a velhice, ou a ideia de envelhecer; vivíamos perdidos no tempo, as tardes nos sufocavam, lentas: tardes paradas no mormaço. Já conhecíamos a noite: festas no Fast Clube e no antigo Barés, bailes a bordo dos navios da Booth Line, serenatas para a namorada de um inimigo e brigas na madrugada, lá na calçada do bar do Sujo, na praça da Saudade. Às vezes entrávamos pelos fundos do teatro Amazonas e espiávamos atores e cantores nos camarins, exibindo-se nervosamente diante do espelho, antes da primeira cena. Mas aquele lugar, Varandas da Eva, ainda era um mistério.

 

Esse trecho de cenário portuário é o início do conto Varandas da Eva, recitado pelo próprio autor, o escritor amazonense Milton Hatoum, na abertura de sua participação no sábado na Tarrafa Literária, encontro internacional de escritores em Santos, realizado de 03 a 07 de setembro. Após sua participação na mesa “Ficção, a mentira sem culpas”, que dividiu com o escritor André Laurentino, Hatoum conversou com a coluna sobre as relações entre porto e literatura. Antes ainda, ao se apresentar ao público, já havia identificou Manaus como o maior porto fluvial do Brasil.

 Foto: Armando Catunda 

Para o autor, a cidade portuária aviva a memória dos narradores porque é uma cidade de aventuras, com o que lembrei dos poemas sobre a cidade de Santos escritos por Pablo Neruda, Blaise Cendrars e Elizabeth Bishop, que têm em comum o episódio de chegada ao porto, como se o ato de aproximação ele mesmo fosse uma força que tirasse o poema de cada um. Sobre as aventuras, ele lembra a infância no porto de Manaus: “Meu avô me levava ao porto. Ali você vê pessoas diferentes. A cidade portuária é cosmopolita, de um movimento intenso colorido, onde circulam histórias”. Por isso, continua, a cidade portuária é onde ocorre a experiência da narração, lembrando Hatoum que narrador, de acordo com a etimologia, é aquele que conhece, isto é, é aquele que, no caso, ouve as histórias que chegam ou partem dos portos.

 

Aproveitei para conversar também com o professor de literatura Milton Hatoum e lhe perguntei sobre um autor que vem sendo tema constante desse espaço há alguns meses: o chileno Roberto Bolaño. Hatoum me responde com um episódio de 1981, quando, ainda inédito como ficcionista, conhece Bolaño, também ainda desconhecido e cabeludo, em Barcelona durante uma conferência de Italo Calvino (por coincidência, outra preferência da coluna). Sobre o autor de Os detetives selvagens, Hatoum disse o seguinte: “É um narrador extraordinário. Soube absorver as influências de Jorge Luis Borges e Julio Cortázar. Tem um certo lirismo. É o narrador de um mundo sem saída, de uma América Latina rasgada. Os detetives selvagens é uma obra poderosa, um grande romance cortazariano”.

 

Na semana que vem, um balanço da Tarrafa Literária.  

 

Referência

Ranulpho Prata. Navios Iluminados. Coleção Brasilis. São Paulo/Santos: Scritta/Página Aberta/Prefeitura Municipal de Santos, 1996.

 

Navios Iluminados em Porto Literário

As letras e a mão-de-obra no porto de Santos 21/02/2006

 

Um navio nazista no cais comunista de Santos 14/11/2005

 

Do alto do Monte Serrat 03/10/2005

 

As cartas entre Lima Barreto e Ranulpho Prata e a gênese do romance portuário 26/09/2005

 

O Brasil que cabe num porto 19/09/2005

 

Martins Fontes, de autor a personagem 25/07/2005

 

O Brasil dos imigrantes no cais de Santos 18/07/2005

 

Uma amizade que conta histórias 13/06/2005

 

As descrições de um médico escritor 30/05/2005

 

Um relato da rotina dos estivadores 23/05/2005

 

Pelo Macuco de 1930 02/05/2005

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