Quinta, 16 Mai 2024

Ai, ai. E voltamos à Tarrafa Literária. Desta vez não é o próprio evento, o primeiro encontro internacional de literatura realizado na cidade, que é alvo desta coluna (ver Um balanço da Tarrafa), mas sim um tema que atravessou uma das mesas do dia 06 de setembro (“Jornalistas além muros”), isto é, a oposição entre textos acadêmicos, considerados difíceis, e jornalísticos, dados como bem escritos. Para mim, as duas afirmações e a própria oposição que contêm são ficções do mercado editorial, ou pior, mentiras repetidas que acabam se transformando em verdades para o senso comum.

 

Começo citando o jovem escritor André Laurentino, que, na própria Tarrafa, no dia anterior, na mesa “Ficção, a mentira sem culpas”, havia comentado que vivemos na “cultura do fácil”. Esse é o pano de fundo que quero contrastar com o texto de hoje. Em termos gerais, agora sou eu que digo, cultura do fácil é aquela que evita o compromisso, cujo exemplo é aquele livro que avisa em nota ao leitor que não tem intenção de servir como “referência para estudos e pesquisas sobre o assunto” e que pede ao leitor uma leitura “sem compromisso, apenas por lazer”, como se não pudéssemos obter prazer de uma leitura compromissada, como se obter conhecimento fosse um pecado contra o prazer (qualquer um que tenha lido os grandes autores sabe que na boa literatura são inseparáveis compromisso, conhecimento e prazer!). Em outra imagem, cultura do fácil é aquela dos professores de cursinho que ensinam fórmulas decoradas para que o aluno passe no vestibular com um conhecimento com data de validade, altamente utilitarista. Que o leitor lembre de outros exemplos, eles estão aí, ao nosso redor. 

 

É a partir desse cenário que comento a mesa “Jornalistas entre muros” em que os escritores Laurentino Gomes e Jorge Caldeira, mediados pelo jornalista Zuenir Ventura, falaram de suas produções de sucesso – 1808, de Gomes, e Mauá – Empresário do Império, de Caldeira. Nos dois casos (principalmente no do autor do bicentenário da chegada da família real ao Brasil, já que Caldeira tem formação acadêmica além do jornalismo) partiu-se da premissa de que jornalista escreve melhor que historiador. É essa mentira repetida que me incomoda, eu, jornalista de profissão com pesquisa acadêmica em História. E nem foram os dois que falaram disso, é como se a “disputa” já estivesse ganha antes mesmo de eles terem sido apresentados à plateia do Teatro Guarany. É algo que está no ar, nos programas de entrevistas, nas conversas sobre livros.

 

Para começar, uma questão básica: são poucos os jornalistas que escrevem livros, geralmente aqueles que chegam a um patamar de reconhecimento que lhes permite se dedicar à escrita que demanda tempo. Assim, fica fácil dizer que Caldeira, Gomes ou qualquer outro escreve melhor que historiadores, cujo texto longo é rotina, não exceção, como no caso das dissertações e teses que se transformam em livro, conhecimento que, admito, muitas vezes acaba mal adaptado para uma linguagem mais acessível, dando fôlego para a ideia.

 

Mas se colocarmos os melhores narradores do jornalismo ao lado dos melhores da História (Boris Fausto, Nicolau Sevcenko, Elias Thomé Saliba e tantos outros), veremos que bom texto é bom texto. Raízes do riso, por exemplo, livro de Saliba que é fruto de sua tese de livre docência (quer algo mais acadêmico que tese de livre docência?), começa com uma piada. O livro, sobre o humor na imprensa brasileira, é saboroso e bem escrito, como neste trecho final dos agradecimentos dedicado à esposa, uma prova de amor dentro da academia:

 

Ficarei agradecido se ela reconhecer no livro as inúmeras anedotas que eu já lhe havia contado, e que, sorrindo pela segunda vez, realize o vaticínio de um certo filósofo que dizia que apenas o segundo sorriso é a única cristalização da felicidade.

 

São exceções? Pode ser, mas também são exceções os livros dos jornalistas. Vamos ao veículo por natureza do jornalista, o jornal: alguém me indique, por favor, um texto de excelência em meio às notícias sem gosto do dia-a-dia dos periódicos que deixaram de lado a reportagem e o ensaio. É essa questão interna dos jornais que faz com que muitos profissionais das redações se arrisquem nos livros, porque reportagem em jornais é algo em extinção, para não dizer extinto.

 

É também premissa comum que todo texto acadêmico é chato. Muitos são, como disse acima, por uma série de motivos: academicismo, burocratismo, citações a rodo, aversão ao risco, etc. Sim, há vários problemas próprios do universo acadêmico que devem ser cuidados. Mas dizer que texto acadêmico é chato só porque é acadêmico demonstra preconceito e, sobretudo, má fé em ignorar que o texto de pesquisadores, ainda que das ciências sociais, deve seguir regras científicas para que as informações ali possam ser cotejadas, avaliadas, confrontadas, afirmadas ou negadas. Por isso é que ali existem notas de rodapé, introduções teóricas, bibliografias e todo um aparato que orienta o leitor. Não levar isso em conta é não dar bola para o conhecimento.

 

Epílogo

Em comentário ao balanço que fiz na semana passada da Tarrafa Literária, José Luiz Tahan, organizador do evento, escreveu que gostou dos comentários, “apesar das porradas”. Creio que meu artigo está mais para uns beliscões, mas volto ao assunto não por causa do comentário em si, cordial e de tom de diálogo, mas porque li uma entrevista do artista plástico e ensaísta Nuno Ramos domingo agora na Folha de S. Paulo, em que me identifiquei com o que disse sobre a função da crítica e que cabe também como – aí, sim – uma porrada na cultura do fácil de que tratei acima:

 

Uma das caretices supremas do nosso tempo é transformar o crítico num ser enfatuado e ressentido – na verdade, há uma libido na crítica, um desejo por mais arte. O que a crítica verdadeiramente faz, mesmo quando fala mal, é pedir à obra que vá mais longe, que seja mais profundamente o que ela tiver de ser.

 

É isso que eu quero da Tarrafa e dos eventos literários, que ela vá mais longe...

  

Referências

Laurentino Gomes. 1808 – Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. São Paulo: Planeta, 2006.

 

Jorge Caldeira. Mauá – o Empresário do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

 

Elias Thomé Saliba. Raízes do riso. A representação humorística na história brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

 

Noemi Jaffe. Os mundos paralelos de Nuno Ramos. Caderno Mais!. Folha de S. Paulo, 20/09/09.

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