Quinta, 16 Mai 2024

No início do ano havia comentado um texto do correspondente do New York Times no Brasil, Larry Rotter, sobre o escritor chileno Roberto Bolaño, no qual o jornalista norte-americano dava mais ênfase a questões biográficas do escritor mosto em 2003 ao invés de discutir sua obra e seu legado. A reportagem sobre o sucesso de Bolaño nos Estados Unidos se centrava em temas sobre a vida “marginal” de Bolaño, a possibilidade de ter usado cocaína, etc. Em Ficção e biografia, escrevi o seguinte:

 

Rotter não escreve uma linha sobre a obra de Bolaño: o correspondente não quer saber da renovação literária promovida pelo autor em livros como Os detetives selvagens, Noturno do Chile ou Amuleto; não analisa sua narrativa nem sua linguagem; não contextualiza sua escrita nem relaciona seu conteúdo com a realidade. O assunto da matéria é a comoção com que nos Estados Unidos se discute se fatos narrados em primeira pessoa por personagens de Bolaño ou pelo próprio foram de fato vividos pelo escritor.

 

Li o texto de Rotter traduzido para o português pelo UOL (clique aqui) e foi no mesmo UOL que a questão biográfica supera a estética, desta vez em uma reportagem da Folha de S. Paulo publicada no caderno Ilustrada na semana passada, Vestígios de Bolaño, assinada por Denise Mota, de Montevidéu. A primeira parte da matéria questiona a publicação pela revista eletrônica chilena 60watts de um conto inédito do chileno, El contorno del ojo, do início da década de 80. Na verdade, diz a reportagem, o conto não é nada inédito, havia sido publicado em 1983 pela editora Prometeo após um concurso promovido pela prefeitura de Valência, Espanha, no qual Bolaño foi o segundo colocado. A reportagem informa que a editora foi fechada em 2005 e que a coletânea, chamada Encuentro em Praga, mesmo que esgotada, pode ser comprada no portal Buscalibros por US$ 141,19 (sem frete).

 

A partir daí, no lugar de criticar o falso ineditismo mas talvez ressaltar o papel da revista por deixar o conto disponível na internet (o preço do livro é muito caro), a reportagem caminha pelo sensacionalismo da era das celebridades: trata de uma postagem da suposta viúva de Bolaño ameaçando a revista com um processo de direitos autorais e, mais ainda, abre um box (jargão jornalístico para a matéria secundária), Críticos questionam a bolañomania, em que, assim como Rotter no New York Times, intelectuais dos Estados Unidos criticam a moda de ler Bolãno.

 

Depois reproduz trecho de uma entrevista do escritor norte-americano Richard Ford para o jornal La Tercera, de Santiago, Chile, em que define Bolaño como o “sabor do mês”: “Acho que ele está supervalorizado nos EUA. Todos escrevem sobre ele, mas ninguém o leu. É fácil falar dele, é exótico, tem uma biografia interessante e está morto”.

 

A Folha também reproduziu trechos de um artigo da professora da City University de Nova York, Sarah Pollok: “Bolaño aparece para o leitor [norte-americano], inclusive antes que se abra a primeira página do livro, como uma mistura dos beatniks com Arthur Rimbaud, com sua vida convertida já em lenda”. Em seguida, ela complementa: sua obra “fomenta uma (pré)concepção de alteridade que satisfaz as fantasias e o imaginário coletivo dos consumidores culturais dos EUA”.

 

Bem, vamos aos problemas. Nenhuma fala das duas fontes da reportagem se referem à obra de Bolaño. Não sabemos se há questões propriamente estéticas que fazem o autor ser tão lido nos EUA (o romance 2666, catatau de mais de mil páginas, é best seller por lá). Não apontam deficiências, influências, não contextualizam o autor no universo literário. Eles nem colocam em tese a questão de várias histórias de Bolaño terem como cenário a fronteira entre o México e os Estados Unidos e alguns de seus personagens serem norte-americanos. É o caso do próprio 2666, que conta com um jornalista de Nova York como um dos protagonistas, sem contar um investigador que cruza a fronteira para investigar os assassinatos que ocorrem do lado mexicano.

 

Em segundo lugar, mostram um preconceito com o próprio leitor norte-americano, que estaria lendo, ou pelo menos comprando, os livros de Bolaño apenas por um desejo por exotismo sul-americano. Se fosse assim, Jorge Amado, bem mais “exótico” que Bolaño, ou qualquer outro autor “regionalista” venderia milhões nos EUA.

 

Mas o pior, pelo menos para mim, é que um jornal de São Paulo, Brasil, América Latina adota a perspectiva de um escritor e de uma crítica dos Estados Unidos e põe Bolaño entre os “exóticos”. Exótico para quem, cara pálida? O que é um escritor sul-americano “exótico” para a Folha de S. Paulo? Para mim, exótico é um escritor que escreva uma história em uma cidade em que neva no inverno. Parece que a família Frias mudou a sede do jornal para o hemisfério norte e não avisou ninguém.

 

Não tem ninguém no Brasil que possa falar sobre o autor chileno e que possa localizá-lo na literatura latino-americana? Que possa fazer uma apreciação estética de sua obra? Que registre a fabulação de Bolaño sobre os governos militares de nossa região, diferente e mais rica daquela do romance-denúncia? Que aponte como a escrita de Bolaño sobre o assunto joga luzes interpretativas ao nosso próprio passado recente (falo de Brasil, um país que ainda resiste, ao contrário de seus pares da América do Sul, a abrir os arquivos e apontar os criminosos da tortura por causa de uma lei feita pela ditadura)?

 

Lógico que as pessoas se interessam pela vida dos artistas que admiram, tudo bem, que isso esteja nas matérias, mas parece que as questões acima não interessam mais à Ilustrada. Para não ficar só na reclamação, na semana que vem publico uma apreciação do conto El contorno del ojo (O contorno do olho).

 

Referências:

Denise Mota. Vestígios de Bolaño. Caderno Ilustrada. Folha de S. Paulo, 13/10/2009. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1310200908.htm

 

Denise Mota. Críticos questionam a bolañomania. Caderno Ilustrada. Folha de S. Paulo, 13/10/2009. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1310200910.htm

 

Roberto Bolaño. El contorno del ojo. In: Encuentro en Praga. Espanha: Editora Prometeu, 1983. Disponível em http://60watts.net/?p=1538

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