Quinta, 16 Mai 2024

Vila Socó queimou em 24 de fevereiro de 1984 e até hoje ainda nenhum jornalista ou historiador se debruçou sobre o assunto para que tivéssemos um trabalho de fôlego sobre este desastre que vitimou Cubatão. Não sabemos quantas vítimas o incêndio de 700 mil litros de gasolina deixou: as 93 oficiais, as 500 das estimativas mais doídas ou um número ao pelo meio. Mas só uma pesquisa abrangente poderia apontar quantas vidas foram perdidas, quantos nomes deixaram de ser chamados.

 

Ainda na urgência do tempo do jornalismo, o jornalista José Rodrigues publicou em fevereiro do ano seguinte à tragédia o livro Vila Socó – A tragédia programada, com textos e charges sobre o assunto. Mas ficamos por aí, nem o jornalismo investigativo nem a historiografia se deram conta de que esta história precisa ser contada.

 

Enquanto isso, é a literatura que se debruça sobre o episódio, como ocorre em Tratado dos anjos afogados, livro de poesia do cubatense Marcelo Ariel publicado em 2008 pela editora LetraSelvagem e que já passou por aqui em artigos como Dois autores lêem o presente e Ariel, Borges e a ficção de Cubatão.

 

E é exatamente essa “ficção de Cubatão”, localizada quem sabe em um futuro próximo onde adolescentes e presidiários marcam encontros pelo MSN-3000 da “google-zone”, pós-apocalípitica que busca falar algo sobre Vila Socó e é o que ocorre na primeira parte do livro: “Vila Socó: libertada”, em que visões do incêndio são misturadas a cenas urbanas da cidade industrial e reflexões filosóficas. Vale lembrar que Ariel é, enquanto cidadão cubatense que passou a infância e a adolescência entre os anos 70 e 80, uma testemunha de toda uma conformação do crescimento das cidades brasileiras e de seus resultados funestos para pobres e imigrantes.

 


Partitura da peça musical "Vila Socó meu amor" sobre
foto do bairro de Cubatão após a tragédia de 1984

 

O que não faz de Ariel, repito aqui, um escritor marginal. Sua poética é metafísica e ele cita e transforma em personagens autores da literatura universal que conheceu bem cedo, frequentando desde pequeno a biblioteca municipal da cidade.

 

E, para chegar ao episódio, Ariel busca na própria literatura e encontra no inferno da Divina Comédia de Dante os elementos que tornam universais a dor de Cubatão, como em Caranguejos aplaudem Nagasaki, poema dedicado a Mano Brown e ao compositor Gilberto Mendes, autor de Vila Socó meu amor, peça que presta homenagem às vítimas do evento (quero evitar escrever acidente), escrita no mesmo fevereiro de 1984, na qual o próprio compositor escreve a letra em homenagem às vítimas. Mas voltemos ao poema de Ariel:

 

(Vila Socó)

Corpos em chamas se atiram na lama
mulheres e crianças primeiro
caranguejos aplaudem Nagasaki
bebê de oito meses é defumado
enquanto Beatriz
agora entende o poema derradeiro
Beatriz mãe solteira antes de morrer
deu um inútil pontapé na porta.

 

Nesse pequeno trecho, é fácil notar como a preocupação de Ariel não é a de usar a literatura para denunciar qualquer situação. O que ocorre é que é a força da literatura, da ficção narrada, que nos leva diretamente para dentro do episódio. É o que ocorre bem claramente em Vila Socó libertada, poema que dá nome à primeira parte do livro e que segue na íntegra:

 

(depois do fogo)
no outro dia
(sem poesia)
as crianças (sub-hordas)
procuram no meio do desterror
botijões de gás
para vender,
um menino indianizado
encontra uma geladeira
pintada por Pollock
dentro o cadáver de uma grávida
incinerado
com a barriga estourada
a mão do feto
devorado
(por Saturno)
atravessa as tripas
sai para
o fora do fora
ali ao lado
onde o silêncio do menino
é calmo
(a quietude neutra avalia o inconsolável)
um jornalista
a cem metros do projeto
caminha
(a câmara-sombra focando um canto)
atrás dele
um rapaz
que julga ver nos escombros
um Lázaro
ele corre e ao agarrar um braço
o braço vem junto e ao ser largado
no ato

por um instante entre o chão
e o espaço é fotografado

pelo pai de um
dos meninos do gás

na foto revelada:

uma realidade
desfocada
(sem mortos, vivos ou paisagem)
tudo é uma névoa-nada.

 

Mesmo que os relatos objetivos sobre a tragédia (termo literário, não é?) ainda devam aparecer, lembro agora do final de um livro de Beatriz Sarlo, Tempo passado, já comentado por aqui, em que a ensaísta argentina trata das narrativas sobre as ditaduras militares da América do Sul e a literatura de testemunho. Ali ela faz uma defesa da literatura como forma de entendimento do mundo:

 

A literatura, é claro, não dissolve todos os problemas colocados [pela reflexão sobre a sociedade], nem pode explicá-los, mas nela um narrador sempre pensa de fora da experiência, como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo.

 

Creio que Marcelo Ariel, assim como outros autores fizeram antes, conseguiu isso. Ele se apropriou do pesadelo e essa é a melhor forma de não ser vítima.

  

Referências

Marcelo Ariel. Tratado dos anjos afogado. Caraguatatuba: LetraSelvagem, 2008.

 

Beatriz Sarlo. Tempo passado: cultura da memória e guinada objetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007.

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