Quinta, 16 Mai 2024

Nas aulas de História da Cultura que cursei em 2006 lá na USP, um dos textos básicos indicados pelo professor Nicolau Sevcenko foi A musa aprende a escrever (1986), de Eric Havelock. Nesse livro, o estudioso britânico analisa a ascensão da cultura escrita entre os gregos em torno do século IV antes de Cristo, ainda que tenha havido momentos em que as duas culturas se compenetravam: “A musa não se transformou nunca na amante rejeitada dos gregos (...) ela aprendeu a ler e escrever mesmo continuando a cantar”.

 

Símbolos dessa mudança são a apreensão da épica por Homero e, na filosofia, a transição da oralidade de Sócrates, que nunca escreveu uma palavra, para a escrita de Platão, responsável pela redação dos diálogos do primeiro. Platão escreve “no momento crucial de transição entre a oralidade e o alfabetismo, entre o ouvido e o olho”, isto é, entre a cultura oral e a escrita.

 

O livro de Havelock, dizem os comentaristas, foi escrito justamente quando no século XX já imperava a comunicação audiovisual da cultura de massa, na qual a oralidade, com as transmissões de rádio e televisão, retorna a um papel significante, ainda que sob uma chave pós-moderna.

 

Dentro desse retorno à oralidade, gostaria de citar um caso bem específico: o do escritor Jorge Luis Borges que, após publicar livros indispensáveis na década de 1940 (Ficções, Artifícios e O Aleph), fica cego em 1955 e passa então a ditar suas criações literárias. Mas a oralidade de Borges, forçada, é, por isso mesmo, bem diversa daquela da cultura de massa e o autor argentino procura em alguns de seus elementos, principalmente a entrevista jornalística, o exercício literário e da reflexão. E isso ocorre principalmente por meio do diálogo, como destaquei na coluna anterior, O crime do quarto fechado, em que citei Sobre a filosofia e outros diálogos, volume com a transcrição de uma série de entrevistas para a Rádio Municipal de Buenos Aires, em 1984, ao jornalista Osvaldo Ferrari.

 

Como a circularidade entre cultura oral e escrita ficou ao menos sugerida nos parágrafos acima, uso uma das entrevistas de Borges, que se dizia um “grego no desterro”, para voltarmos à mudança analisada por Havelock:

 

Acho que um dos mais antigos [dramaturgo] seria Platão, o dramaturgo que cria Sócrates e os interlocutores de Sócrates (...) de acordo com uma visão teatral do mundo. E depois teríamos, bem, talvez os discípulos de Pitágoras, já que Pitágoras [assim como Sócrates] se absteve de deixar algo escrito, não é? (...) De modo que poderíamos chegar à conclusão de que não convém escrever, convém conversar e que alguém faça o registro... bom, neste momento, eu sou um modestíssimo Pitágoras (ri) do Cone Sul, da América do Sul.

 

Sobre os motivos de Platão em escrever os diálogos, Borges disse o seguinte:

 

Talvez Platão, para se consolar da morte de Sócrates, fez com que Sócrates continuasse conversado postumamente, e perante qualquer problema, disse para si mesmo: “O que teria dito Sócrates?”. Embora, é claro, Platão se ramifique não somente em Sócrates, mas em outros interlocutores, como Górgias, por exemplo. Há estudiosos da filosofia que se perguntam o que exatamente Platão se propõe em tal ou qual diálogo; poderíamos responder, eu acho, que não se propôs nada, que deixou que seu pensamento se ramificasse em diversos interlocutores e que ele imaginou essas diversas opiniões, mas sem levar em conta uma meta final. Isso pode ser assim, não é?

 

Da épica à filosofia grega; daí à escrita, à cegueira, então de volta ao diálogo. Hoje eu trucidei a musa.

 

Referências

Eria Havelock. A musa aprende a escrever. Reflexões sobre a oralidade e a literacia da antiguidade ao presente. Fotocópia.

 

Jorge Luis Borges e Osvaldo Ferrari. Sobre a filosofia e outros diálogos. Organização e tradução John O’Kuinghttons. São Paulo: Hedra, 2009.

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