Quarta, 01 Mai 2024

Na semana passada transcrevi dois poemas de Anna Akhmátova (1899-1966), Terra Natal e Tebas, que trazem uma curiosa indicação: foram escritos em 1961, em São Petersburgo, “no hospital perto do porto”. Hoje vamos explorar o que pode significar esta referência.

 

* Leia o artigo "Perto do porto (I)

 

A ligação mais direta – e sem graça – é que em 1961 Akhmátova já sofria de uma doença cardíaca e que realmente esteve em tratamento. Mas o curioso é que os poemas não são assinados do Hospital Kúibishev, onde esteve internada, mas de um hospital “perto do porto”. É daí que parte este Porto Literário.

 

Akhmátova faz parte de uma linhagem de autores de São Petersburgo que tem início com Alexander Púshkin (1799-1837), nascido cem anos antes dela, autor de O Cavalheiro de Bronze (1833), poema narrativo que dá início à literatura russa moderna. Também são de lá, olha só que time, Nikolai Gogol (1809-1952), Liev Tolstói (1828-1910) e Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Essa centralidade da cidade na vida literária do país decorre porque ela foi criada – em 1703 – como uma janela (uma “claraboia”, conta o poeta Joseph Brodsky) para a Europa. O encontro de duas culturas por meio do porto de São Petersburgo promoveu o nascimento de uma das mais notáveis literaturas da história da humanidade.

 

Mais nova que seus conterrâneos clássicos, Akhmátova faz parte também de outra galeria de escritores, os que queriam tirar a poesia russa do beletrismo do XIX, movimento semelhante ao dos modernistas no Brasil. Após a Revolução de 1917, sua geração sofre um grande baque com a crescente perseguição de intelectuais e escritores, principalmente sob Stálin. Seu primeiro marido, Nicolái Gumilióv, é executado em 1921. O filho do casal, Liev, posteriormente seria condenado a anos de trabalhos forçados na Sibéria.

 

Ainda conforme Brodsky, escrevendo sobre a situação da viúva de Óssip Mandelshtám (outro escritor executado sob o stalinismo), a situação era a seguinte: “... nos anos 30 e 40 o regime produzia viúvas de escritores com tamanha eficiência que em meados dos anos 60 elas já eram em quantidade suficiente para organizar um sindicato”.

 

A partir dos anos 20 (sua primeira obra é de 1914) Akhmátova forja sua experiência pessoal à coletiva e transforma em poesia as perambulações de esposas e mães pelas prisões da União Soviética. Vem daí seu apelido de “musa lastimosa”. Perseguida, sua obra foi impedida de ser publicada (com exceção dos anos da 2ª Guerra, em que o tom de amor à terra de seus poemas foi usado pelo regime) e, assim como muitos intelectuais, como o próprio Brodsky, teve a chance de se exilar, mas nunca quis deixar sua amada Rússia. Talvez daí, dessa esquina do mundo, entre Rússia e Europa, entre o amor à terra e a liberdade fora dela, entre pertencer e viajar, que Akhmátova tenha identificado seus poemas como escritos perto do porto.  

 

Referências:

Anna Akhmátova. Antologia Poética. Seleção, tradução, apresentação e notas de Lauro Machado Coelho. Porto Alegre: L&PM, 2009.

 

Joseph Brodsky. A musa lastimosa e Nadezhda Mandelstam (1899-1980) – um obituário. In: Menos que um: Ensaios. Tradução de Sergio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

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