Sexta, 26 Abril 2024

Em Noturno no Chile, o escritor chileno Roberto Bolaño nos traz um narrador em primeira pessoa, Sebastián Urrutia Lacroix, um velho padre que relata suas memórias de juventude, quando se iniciava na crítica literária e começava a escrever seus poemas.

 

Logo no início, na página 18, o narrador nos conta sobre seu segundo encontro com outro personagem, González Lamarca, então o maior crítico do país, que assinava seus textos com o pseudônimo Farewell. O episódio ocorre quando Lacroix é convidado pelo crítico a se unir a ele e outros escritores em sua casa de fazenda, Là-Bas, a uma distância de uma pequena viagem de trem a partir de Santiago.

 

Ao chegar à residência do crítico, Lacroix assim apresenta o ambiente que será o objeto deste Porto Literário:

 

Em Là-Bas, Farewell me esperava com um jovem poeta cujo nome eu não sabia. Ambos estavam no living, embora chamar de living aquela sala fosse um pecado, mais parecia uma biblioteca e um pavilhão de caça, com muitas estantes repletas de enciclopédias, dicionários e souvenirs que Farewell havia comprado em suas viagens à Europa e ao Norte da África, além de pelo menos uma dúzia de cabeças empalhadas, entre elas as de um par de pumas que o próprio pai de Farewell tinha caçado. 

 

Esse lugar que mistura livros, lembranças de viagens e troféus de caça desperta no narrador a imagem de um porto como metáfora da atividade crítica de Farewell:

 

Ao sair, voltei a ouvir o latido do cachorro e um tremular de folhagens, como se um bicho se escondesse no mato e dali seus olhos seguissem meus passos erráticos em busca da casa de Farewell, que não demorei a ver, iluminada como um transatlântico na noite austral. Com um decidido gesto de valentia optei por não me despojar da batina. Fiquei um tempo fazendo hora no pavilhão de caça, folheando alguns incunábulos [obras produzidas nos primeiros tempos da impressão, entre 1450 e 1500]. Numa parede se amontoava o melhor e o mais conceituado da poesia e da narrativa chilena, cada livro dedicado pelo autor a Farewell com frases engenhosas, amáveis, carinhosas, cúmplices. Disse comigo mesmo que meu anfitrião era sem dúvida o estuário onde se refugiavam, por períodos curtos ou longos, todas as embarcações literárias da pátria, das frágeis lanchas aos grandes cargueiros, dos odoríficos barcos pesqueiros aos extravagantes encouraçados. Não era à toa que, um segundo antes, sua casa tinha me parecido um transatlântico! Na realidade, disse comigo mesmo, a casa de Farewell era um porto.

 

O ritmo do trecho destacado é bem representativo do restante da narrativa, formada por um único e rápido parágrafo de 118 páginas. Enquanto a casa do crítico e sua biblioteca têm a imagem de porto como metáfora, as obras literárias são imaginadas pelo narrador como embarcações de todos os tipos. Vamos então partir dos elementos do trecho de Roberto Bolaño acima destacado:

 

I

A ação da passagem em destaque tem início logo após Lacroix ter deixado a residência de empregados da fazenda, lugar até onde chegara durante seu passeio pela propriedade rural. Essa é a circunstância em que o narrador se reaproxima da sede de Là-Bas e a descreve como um transatlântico, imagem que remete o leitor para o campo metafórico do porto, isto é, o campo da expressão literária de situações, imagens e estilos narrativos que têm os portos como referência. Ao apresentar esse campo (quase como por uma piscadela, na expressão de Umberto Eco) a palavra transatlântico desempenha o papel de era uma vez da metáfora que vai tomando forma em seguida.

 

II

A decisão de manter a batina, que é retomada neste trecho, age narrativamente para nos lembrar o desconforto de Lacroix na casa de Farewell, “fazendo hora” para evitar estar entre o admirado crítico e escritores que não conhecia e sobre os quais pouco sabia. A sensação de não pertencimento revela algo da personalidade e dos meios freqüentados pelo narrador, mas aí entramos no conteúdo do livro, que é a história de Lacroix contada por ele mesmo. Para a coluna, vale destacar que a sensação de não pertencimento é tema comum das histórias de viagem, mesmo que aos arredores da capital (no caso, a viagem foi feita de trem).

 

III

A partir daí já estão dadas as condições de percepção e inteligência das embarcações como metáforas para os produtos literários, imagem que soa tão natural no desenrolar do texto de Bolaño.

 

Os autógrafos de autores dedicados ao crítico demonstram o alcance de sua influência e admiração, a enumeração de suas características prepara o leitor para aceitar a metáfora seguinte, a do crítico como se fosse um estuário a proteger as embarcações das letras por “períodos curtos ou longos”, como se indicassem se tal obra é um clássico ou uma moda.

 

IV

Já as variadas espécies de embarcações representam os estilos e gêneros literários: frágeis lanchas (um poema de Manoel de Barros, quem sabe?), grandes cargueiros (Ulysses, de James Joyce, ou O homem sem qualidades, de Robert Musil), barcos de pesca com cheiro (a literatura policial) ou extravagantes encouraçados (a série do 007 e outros romances de espionagem).

 

Epílogo

 

Na realidade, disse comigo mesmo, a casa de Farewell era um porto.

 

Nesta última oração do trecho em destaque a metáfora do abrigo protetor – estuário – abandona a pessoa do critico e passa a se referir à sua biblioteca. Roberto Bolaño não escreveu mais que até aí – pelo menos neste livro – sobre a atividade portuária como metáfora para a literatura. Fica para nós então imaginar qual outra metáfora portuária poderia caber nos críticos: uma autoridade portuária, com poder de deixar entrar e sair, de criar normas e compêndios, e vasculhar padrões e estatísticas; ou um farol, que bate suas luzes nas obras em contraste com as paredes cheias de livros, como se fossem as margens do estuário ou as pedras de um cais?

 

Referências:

Roberto Bolaño. Noturno no Chile. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
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