Sexta, 26 Abril 2024

Em sua coluna no Estadão, Luis Fernando Veríssimo, com um afiado olhar sobre nossos dias, costuma perguntar: “poesia numa hora dessas?”. Essa é a pergunta que repito ao tratar mais uma vez de literatura quando mais um trabalhador perde a vida no cais de Santos. Cabe aos especialistas determinar as causas e à Justiça punir as negligências. Ao Porto Literário, se algum consolo ostenta, resta contribuir para a reflexão sobre esse espaço político-econômico-cultural.

 

I

Das obras do ciclo do romance portuário, Barcelona Brasileira, de Adelto Gonçalves, escrito no início da década de 80 e publicado no Brasil apenas em 2003, é a que mais se diferencia das demais – só para lembrar: Navios Iluminados, Cais de Santos, Querô – uma reportagem maldita e Os Vira-latas da madrugada tratam do mundo do trabalho portuário (o primeiro) ou dos espaços intermediários entre o cais e a cidade.

 

Barcelona Brasileira é o único deles cujo protagonista não é um morador dos bairros portuários: o Poeta, baseado em Martins Fontes – médico, escritor e orador anarquista –  é uma figura que circula em diversos ambientes da cidade, dando ao narrador a oportunidade de registrar um panorama mais completo, simbolizado na mobilidade do personagem, que dirige um Ford pelas ruas de Santos.

 

Essa diferença faz de toda a Cidade um cenário da luta de classes no período das greves anarquistas de 1917. Os personagens se enfrentam em salões, nas redações dos jornais, nos palácios do governo e da burguesia e nos espaços públicos.

 

II

E é no bonde que ocorre uma das cenas capitais do romance, como apontado em O bonde-operário da Moscouzinha Brasileira, em que foram apontadas passagens literárias para ilustrar o novo estudo do historiador Rodrigo Rodrigues Tavares sobre o universo operário em Santos. A cena de Barcelona Brasileira dá uma boa amostra desse cenário e desse conflito:

 

Parados na calçada da Praça Mauá, em frente ao Café Elite, o Espanhol [Angel Blanco] e Augusto Alves olhavam os cartazes afixados em suportes de madeira colocados em ambos os lados da entrada do cinematógrafo: William S. Hart em O Homem Tigre–, no Coliseu, Rosa de Estambul. Olhavam com desatenção, sem a preocupação de reconhecer os rostos dos artistas. Estavam mais atentos em acompanhar disfarçadamente os movimentos dos companheiros junto ao balcão que ficava em sentido oposto à bilheteria e à entrada para a sala de projeção.

 

Blanco e Alves buscavam Pedro Saavedra e Miguel de Sousa. Os quatro haviam vindo do Café da Leoneza, onde estavam reunidos. E, naquele momento, estavam aguardando o momento de agir. O objetivo dos quatro estivadores era assassinar Antonio Dias, feitor da estiva que com violência e ameaças havia impedido a turma de estivadores que comandava de entrar em greve. Jurado de morte no cais, Dias andava armado e se sentia seguro para levar o filho de seis anos ao cinema.

 

Os dois primeiros acompanham pai e filho na sessão, enquanto os outros dois vigiam a saída fazendo hora no bar. Dias e o filho chegaram à praça no bonde 11, que cruzava o bairro portuário do Paquetá. Na volta, na mesma linha, eles têm no bonde a companhia dos quatro operários. A ação se desenrola da seguinte maneira:

 

Eram 22 horas quando o motorneiro deu o sinal que avisava a partida do bonde para a sua última viagem naquela noite. O bonde contornou a Praça Mauá e se foi pela Rua General Câmara em direção ao Paquetá. Ao longo do trajeto, os demais passageiros foram desembarcando, de modo que, quando o bonde chegou na esquina das ruas João Otávio e General Câmara, só se achavam no veículo Antonio Dias, a criança e os quatro homens. Foi nesse momento que Antonio Dias ergueu-se para tocar o tímpano e fazer parar o bonde. Atrás dele, Miguel de Sousa estava tenso: a mão apoiada na coronha do revólver junto à cintura revelava a mesma tensão do olhar. Mais atrás, o rosto pálido de Pedro Saavedra havia adquirido uma dureza metálica. Ouviu-se, então, o primeiro tiro. E, logo em seguida, outro. Antonio Dias deu um passo para trás e desabou no banco. De sua têmpora esquerda, escorria um filete de sangue.

 

Na próxima semana, vamos comparar a passagem acima com o levantamento histórico sobre o mesmo episódio. Até.

 

Referência:

Adelto Gonçalves. Barcelona Brasileira. São Paulo: Publisher Brasil, 2003.
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