Sexta, 26 Abril 2024

Após uma recente arrumação de gavetas trouxe para a pilha de leituras do dia um exemplar da edição de agosto de 1999 da revista Cult. Eu o havia lido lá já no século passado, quando linguiça se escrevia com trema. Na capa, Jorge Luis Borges tomando creio que um café com leite e a manchete “BORGES os labirintos da escrita”, dossiê da edição de aniversário (Ano III, R$ 4,50). Era o ano do centenário de seu nascimento.

 

A ocasião do tema foi a publicação em português no Brasil das Obras Completas do autor argentino, que naquele momento chegava ao terceiro volume. O dossiê tem início com um testemunho do assessor editorial da empreitada, Jorge Schwartz, no qual registra a estratégia, táticas, opções, cuidados e ciladas no percurso da equipe de tradutores, entre os quais o próprio Schwartz, que também atou na revisão.

 

Nem me lembrava desse texto de tradução, a primeira leitura do dossiê já estava diluída em uma década de leituras do autor. Mas o tema da tradução me trouxe algumas reflexões devido às traduções do espanhol que venho publicando aqui no Porto Literário e no blog Revista Pausa.

 

Não cabe aqui uma análise de todo o relato, então limito a exposição a presentar algumas ideias de Borges sobre o que ele mesmo escreveu sobre traduzir. Logo no começo Schwartz enumera textos em que o autor comenta a tradução e, além disso, a transposição de textos entre culturas e contextos, um campo sem fórmulas, mas com regras (assim como as crianças têm como regra levar a brincadeira à sério).

 

Um deles é As versões homéricas, do livro Discussão (1932), incluído no volume I das Obras Completas. No prólogo Borges trata o texto como “minhas primeiras letras – que não creio um dia ascendam a segundas – de helenista divinatório”. Seu texto se inicia conformado com a grandeza da tarefa tradutória:

 

Nenhum problema tão consubstancial com as letras e seu modesto mistério como o que propõe uma tradução.

 

Do mesmo parágrafo inicial, Schwartz cita o trecho final em que se mostra uma das principais características das escritura de Borges, a reescrita e a leitura como forma de alterar o escrito.

 

O que são as versões da Ilíada (...) senão diversas perspectivas de um fato móvel, senão um longo lance experimental de omissões e de ênfases? (...) Pressupor que toda recombinação é obrigatoriamente inferior a seu original, é pressupor que o rascunho 9 é obrigatoriamente inferior ao rascunho H – já que não pode haver senão rascunhos. O conceito de texto definitivo não corresponde senão à religião ou ao cansaço.

 

Agora, para ilustrar a transposição de contextos, o argumento do conto À procura de Averróis, do clássico O Aleph (1949). Ali, o filósofo protagonista tem um problema, comentar a obra de Aristóteles. Sem conhecer as línguas siríaca ou grega, o pensador tinha acesso ao clássico autor de Retórica em árabe por meio de traduções de traduções, sem contar que havia 14 séculos que separavam os dois no tempo.

 

O problema em si se apresenta em outro texto, a Poética. Imerso na cultura islã da Córdoba medieval, onde não se conhecia a ideia de teatro e drama, o filósofo não consegue encontrar significado para duas palavras fundamentais do tratado, tragédia e comédia. Ainda que elevado à expressão máxima neste conto filosófico, é esse “processo de derrota” do quê o narrador chama a tradução. Isto é, sempre haverá algo inatingível na tradução (também nas trocas culturais).

 

Mas isso não é motivo de lamentação. Borges, um argentino do século XX, escreve em espanhol um conto em que traz para a ficção um filósofo espanhol do século XII de expressão árabe que, por sua vez, foi um dos principais responsáveis no Ocidente pela difusão – e da sobrevivência – do pensamento aristotélico, ainda que Averróis não entendesse a língua em que se expressava o grego Aristóteles do século IV antes de Cristo.

 

Para concluir, volto ao parágrafo inicial de As versões homéricas:

 

Um parcial e precioso documento das vicissitudes que [o texto] sofre permanece em suas traduções.

 

Mesmo com todas as dificuldades, ali afirma-se que, além das questões técnicas, a passagem é possível.

 

Referências:

Jorge Schwartz. Traduzir Borges. Cult – Revista Brasileira de Literatura. Ano III, nº 25. Lemos Editorial, agosto de 1999, pp. 40-50.

 

Jorge Luis Borges. As versões homéricas. In: Discussão. In: Obras Completas; Volume I. São Paulo: Globo, 1998.

 

Jorge Luis Borges. A procura de Averróis. In: O Aleph. In: Obras Completas; Volume I. São Paulo: Globo, 1998.

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